sexta-feira, novembro 7, 2025
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Mamãe, vende eu

“ – Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida
gostosa”.

Não se lê uma frase como essa impunemente. Por mais que a leitura do
livro revele uma autora muito diferente de nós – que lemos e que escrevemos
esse relato –, uma pessoa que ria da vida com fome do espírito das letras, que
matava a angústia e a fome do corpo lendo e escrevendo, que não se
resignava ao sofrimento, por mais que o livro mostre uma pessoa forte, em
busca da vida em meio à lástima, mais alegre do que triste (até nisso diferente
de nós), não há como ler a descrição da filha pedir comida, sem se abalar.

Se há algum sentimento dentro de quem lê, se não é um ato mecânico,
se quem lê tem algum sintoma de interação e de empatia, há que se comover
com a fome de uma criança pobre e faminta. Talvez se possa ler esse texto
que escrevemos de forma mecânica, sem muito entusiasmo – o que é
compreensível –, porém, a leitura dessa frase, se não se vai ler o livro todo,
não pode ser uma confissão de nossa frieza emocional e social.

Que se pense o mais básico, o mais simples de se entender, afinal, qual
criança pediria à própria mãe para ser vendida a fim de que pudesse comer?
Não se trata apenas do retrato de uma criança pobre, de uma criança famélica,
sem noção correta, consciente, do que veio pedir à mãe. Isso é certo, mas a
honestidade da mãe que não a vendeu e a sinceridade da menina deveriam
bastar para que nos comovêssemos.

Quem lê isso tem a certeza de que as crianças pobres e famintas não
têm um dia para si. Para milhões de crianças nessa situação não existe Dia
das Crianças, porque todo dia é dia de fome e de sofrimento. Sempre serão
dias contra as crianças.

O que nos faz pensar o tanto que nossa sociedade está anestesiada,
historicamente dormente, indiferente aos que passam fome e todo tipo de
desalento, quanto vemos as chamadas as vorazes elites, muito mais do que
famintas, para alimentar seu capital.

Nem se trata aqui da corrupção que corrói a cultura, a esperança, a
confiança no ser humano, uma vez que isso seria considerado
“excessivamente acadêmico”. Não, nem falemos da corrupção que, como
formigas insaciáveis, cortam todas as folhas que poderiam levar alguma seiva
de verdade e vida.

Não falemos de quantas crianças morrem de fome ou de doenças – até
não muito complexas – porque não há profissionais de saúde, remédios,
equipamentos, vacinas, prevenções suficientes em suas regiões. Não falemos
disso…

Falemos dessa criança que queria ser vendida para ter o que comer.
Falemos que não é um livro de ficção, um romance inventado pela cabeça de
alguém com tempo de escrever; falemos que é mais do que um livro, é um
diário. Trata-se de um registro efetivo, realista, com as impressões registradas
a partir dos sentimentos e das vivências daquelas pessoas. A história desse
povo brasileiro não é romanceada, não é uma crônica, não, não é nada disso.
É somente a descrição da dor.

Falemos que nenhuma criança deveria ter um dia assim.
Falemos que todas as crianças merecem um Dia das Crianças que as
alimente de fato.

Falemos que toda criança tem o direito de não sofrer por abandono,
violência, abuso, fome, vítima da maldade ou da corrupção pública.
É um direito humano das crianças não terem um faminto Dia das
Crianças, a não ser que estivessem famintas de vontade de brincar.

Se houve incômodo nesta leitura, assim como ainda fico abalado com o
livro, que é um diário da dor pessoal e social, digo que é ótimo – digo que
poderemos, juntos, comemorar o óbvio. O óbvio é sentir a dor do outro, da
outra.

Por fim, se você puder ler esse relato que fiz de mim mesmo no dia 12,
domingo, no Dia das Crianças – e se ainda indicar para alguém como nós dois
–, aí, sim, teremos saído um pouco dessa obviedade que se transformou a vida
moderna deste país indiferente às pessoas.

CAROLINA Maria de Jesus. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São
Paulo: Ática, 2014, p. 42.

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