Por LISZT VIEIRA*
Por mais importante que seja, a transição energética, por si só, não será suficiente para enfrentar a crise climática e suas desastrosas consequências
A tragédia climática, prevista pelos cientistas, já chegou, não é mais coisa do futuro. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) ligada à ONU, alertou para a continuidade do aumento da temperatura global. “No final de maio, mais de 1,5 bilhão de pessoas — quase um quinto da população do planeta — suportaram pelo menos um dia em que o índice de calor superou 103 graus Fahrenheit, ou 39,4 graus Celsius, o limite que o Serviço Nacional de Meteorologia considera fatal”, informou o Washington Post.
Muitos pesquisadores preveem que o mundo atingirá 3ºC até o final do século. Não há nenhum sinal de que realmente vamos ficar abaixo de 1,5ºC, a meta estabelecida pela Conferência de Paris de 2015, a COP 21. Centenas de especialistas do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), entrevistados pelo jornal britânico The Guardian, afirmaram que a temperatura chegará em + 2,5ºC ou + 3ºC e apenas 6% acreditam que a meta de 1,5ºC do Acordo de Paris será cumprida. 75% dos especialistas citam falta de vontade política e 60% culparam interesses econômicos como os da indústria de combustíveis fósseis.
Alguns esforços importantes estão sendo feitos em alguns países, mas claramente insuficientes. Na França, por exemplo, o Conselho Superior para o Clima, órgão consultivo do governo francês, estima que o país poderá atingir as suas metas de redução das emissões de gases de efeito de estufa em 50% até 2030, desde que mantenha o ritmo atual. Mas serão necessários esforços ainda maiores, pois o Conselho considera que as políticas atuais, apesar dos “progressos significativos”, são “insuficientes” para alcançar a neutralidade de carbono em 2050 (Le Monde, 20/6/2024).
O climatologista brasileiro Carlos Nobre advertiu que, de acordo com o relatório da OMM, em 2023 a temperatura média global próxima da superfície ficou 1,45 °C acima da linha de base pré-industrial de 1850-1900. Dados do Copernicus (Serviço Europeu sobre Alterações Climáticas) apontam que maio de 2024 foi 1,58 °C mais quente do que a linha de base pré-industrial. Entre 1998 e 2017, as inundações afetaram mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo. Elas podem causar devastação generalizada, resultando na perda de vidas e em danos a bens pessoais e infraestruturas críticas de saúde pública, e, segundo a OMM, as inundações causam mais de US$ 40 bilhões em danos todos os anos em todo o mundo.
No Brasil, segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por algum desastre climático, especialmente por tempestades, inundações, enxurradas ou alagamentos nos últimos 10 anos. As perdas causadas pelas chuvas no Brasil já geraram prejuízos de R$ 55,5 bilhões entre 1º de outubro de 2017 e 17 de janeiro de 2022, segundo estudo da CNM.
No período de 2013 a 2022, mais de 2,2 milhões de moradias foram danificadas em todo o país por causa desses eventos, afetando diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas em 2.640 cidades do país. Segundo levantamento realizado pela Agência Pública (2023), das 27 capitais brasileiras, 17 não possuem plano de enfrentamento às mudanças climáticas.
No primeiro semestre de 2024, o Pantanal e o Cerrado bateram recordes e registraram a maior quantidade de focos de incêndio desde 1988, quando o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) começou a monitorar queimadas no país. Na Amazônia, foram detectados 12.696 focos de queimadas entre 1º de janeiro e 23 de junho. A alta foi de 76% em comparação ao mesmo período no ano passado, depois de dois anos seguidos de baixas, em 2022 e 2023 (UOL, 24/6/2024).
Um relatório recente do Serviço Geológico do Brasil mostra que secas e cheias mais que dobraram de 2014 a 2023 em relação aos dez anos anteriores. O ano de 2023 foi o mais quente da história no Brasil e no mundo e parece que 2024 vai na mesma direção. Em maio de 2024 chuvas intensas afetaram a maior parte do Rio Grande do Sul e deflagraram o maior desastre climático na história do Brasil, com 172 mortos e bilhões de reais em perdas econômicas.
Em 24 de junho de 2024, foi lançada a Carta da Comunidade Científica Brasileira sobre a Necessidade de Ação Permanente do Poder Público diante da Crise Climática. De 1991 a 2023, houve mais de 5 mil mortes, 9 milhões de desabrigados e desalojados, e 1 milhão entre feridos e enfermos. De 1990 a 2022, as emissões por mudanças de uso da terra e queima de resíduos florestais somadas ao setor agropecuário totalizam mais de 74% das emissões brutas de gases de efeito estufa do Brasil, ou seja, 1.737 milhões de toneladas equivalentes de dióxido de carbono. Mesmo assim, os setores econômicos continuam apostando no avanço e abertura de novas fronteiras agrícolas. E no Congresso tramitam vários Projetos que enfraquecem ou anulam a legislação de proteção ambiental.
A Carta mostra ainda que as mais vulnerabilizadas pelos eventos climáticos extremos são as populações negras, periféricas, pessoas em situação de rua, mulheres chefes de família, crianças, adolescentes, povos indígenas e comunidades tradicionais, por falta de acesso a direitos constitucionais básicos, como infraestrutura, saneamento, moradia, renda, saúde e educação. No mês de junho de 2024, o Brasil aparece repartido entre o Centro -Oeste queimando na seca e um Sul sob o impacto de tempestades violentas. Até meados do mês, o Pantanal acumulou 2.019 focos de incêndio, segundo a plataforma BDQueimadas, do INPE. Em igual período de 2023 foram 133 focos.
Em 2023, ondas de calor afetaram Canadá, Índia, Europa e Japão com temperaturas recordes. O planeta aquecerá em 1,5 °C em todos os cenários de projeções: mesmo atingindo a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris de reduzir em quase 50% as emissões de GEE até 2030, alcançaremos 1,5 °C permanentemente por volta deste ano. O mundo está ficando para trás em metas de meio ambiente, saúde e fome, e está longe de atingir a maioria das metas de desenvolvimento sustentável fixadas em 2015, como o combate à pobreza e à fome, disse um relatório da ONU que cita, entre as causas, a falta de financiamento, as tensões geopolíticas e a pandemia da Covid-19.
O Relatório da ONU analisa o desempenho de seus 193 Estados-membros na implementação de 17 objetivos de desenvolvimento sustentável abrangentes, que também incluem a melhoria do acesso à educação e à saúde, o fornecimento de energia limpa e a proteção da biodiversidade. O relatório constatou que nenhum dos 17 objetivos está em vias de ser cumprido até 2030, com a maioria das metas mostrando progresso limitado ou uma reversão do progresso.
O relatório identificou o combate à fome, a criação de cidades sustentáveis e a proteção da biodiversidade na terra e na água como áreas específicas de fraqueza. Segundo o IPCC, moradores de periferias morrem 15 vezes mais por eventos climáticos extremos e o número de pessoas expostas a secas e enchentes em cidades deve dobrar até 2030. Pessoas negras e mulheres de baixa renda, com até um salário mínimo e chefes de família, são as mais afetadas, aponta pesquisa recente do Instituto Pólis.
O Governo Brasileiro já anunciou a intenção de se tornar um país com liderança mundial no que diz respeito à crise climática. Mas, ao que tudo indica, vai chegar com dificuldades na Conferência Internacional do Clima COP 30 que vai sediar em Belém em 2025. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) não tem poder para enfrentar o Ministério da Agricultura que apoia o desmatamento para expandir o agronegócio, e o Ministério de Minas e Energia, que apoia a exploração de petróleo na Margem Equatorial do Amazonas.
Nos últimos 10 anos, a receita da União dobrou, enquanto a verba para a área ambiental foi reduzida pela metade. Um orçamento tão baixo, menos que 0,1%, do orçamento total, mostra o desprezo dos diversos governos pela proteção do meio ambiente e de nossas riquezas naturais. Com a verba estrangulada, o MMA não pode atender às justas reivindicações dos servidores do Ibama e do ICMBio, em greve que já dura mais de cinco meses.
O Brasil já sofre a violência de eventos climáticos extremos. Seca na Amazônia e Centro Oeste, incêndios no Pantanal, inundações catastróficas no Sul, ondas de calor, desmoronamentos e enchentes nas periferias das metrópoles, mortos e desalojados engrossando a onda de refugiados do clima que vem aumentando a cada ano. Apesar disso, os interesses econômicos e políticos ligados ao agronegócio predador – agricultura, pecuária, mineração, garimpo etc. – e à exploração de combustíveis fósseis continua prevalecendo sobre a política de proteção ambiental.
O mundo vai enfrentar desastres cada vez maiores com a temperatura ultrapassando 1,5º C, como está próximo de ocorrer. A política de transição energética, mais cedo ou mais tarde, vai predominar nas próximas décadas, sob pena de a vida, humana e animal, ficar ameaçada no planeta. Será preciso um esforço gigantesco para promover uma transição civilizatória, para longe dos combustíveis fósseis. Para isso, será necessário que a população se torne consciente sobre riscos climáticos e disposta a pressionar pela tomada de ações eficazes, o que vai exigir coragem por parte dos tomadores de decisão, no setor público e privado.
A maior pesquisa de opinião pública independente sobre a mudança climática, People Climate Vote (Voto Popular pelo Clima) 2024, revela que 80% das pessoas (ou quatro de cinco pessoas) em todo o mundo querem que seus governos tomem medidas mais enérgicas para fazer frente à crise climática. Mais ainda, 86% quer que seus países deixem de lado as diferenças geopolíticas e trabalhem juntos face à mudança climática.
Mais de 73 mil pessoas de 77 países e que falam 87 línguas diferentes foram entrevistadas com 15 perguntas sobre mudanças climáticas para o estudo de opinião promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, e pela GeoPoll. Os 77 países pesquisados representam 87% da população mundial. Além do amplo apelo a uma ação climática mais ousada, a pesquisa mostra o apoio de uma maioria de 72% em todo o mundo a favor de uma rápida transição para o abandono dos combustíveis fósseis (PNUD, 20/6/2024).
Por mais importante que seja, a transição energética, por si só, não será suficiente para enfrentar a crise climática e suas desastrosas consequências. A sobrevivência da humanidade vai exigir um novo modo de vida e de produção que garanta a sustentabilidade da vida humana em nosso planeta. A alternativa é a possível destruição da vida no planeta, que já conheceu diversas extinções de espécies. Estamos caminhando para mais uma. Os indícios do colapso da nossa civilização já são visíveis no horizonte. E se houver, como pensam alguns, uma nova guerra mundial, desta vez com armas nucleares, esse processo vai ser acelerado.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]