Por LEONARDO SACRAMENTO (*)
A teologia transformou-se em coaching ou fomentador da disputa entre trabalhadores no mundo do trabalho
1.
Habitualmente, os evangélicos são um ponto de incompreensão para os movimentos sociais, acadêmicos, partidos e imprensa. A falta de compreensão deve-se a uma falsa historicidade, na qual se compara neopentecostais com protestantes e calvinistas europeus a partir de uma história comparativa das ideias. Ocorre que os processos políticos entre protestantes europeus e neopentecostais brasileiros são completamente distintos.
Para entender os neopentecostais brasileiros,[1] é preciso analisar como o neopentecostalismo se estruturou e se amalgamou nas relações sociais brasileiras. A chave para a compreensão do movimento neopentecostal é a elucidação da função social do movimento enquanto instrumento político e a forma pela qual a sua teologia se consolida como instrumento de regulação de uma dada sociabilidade nas relações de produção do capitalismo brasileiro. E a regulação, segundo dados e pesquisas, está nas noções de desigualdade e mérito, ambas refletidas no neoliberalismo.
A pesquisa da Oxfam Brasil em conjunto com o Datafolha, publicada nos meios de comunicação em maio de 2019, constatou que o brasileiro acredita que a desigualdade é um empecilho ao progresso do país. Contudo, a causa primeira para a sua superação seria o combate à corrupção, o que corrobora a vitória da perspectiva udenista e lavajatista segundo a qual a corrupção seria o começo, o meio e o fim de todos os problemas sociais, reduzindo os problemas e a complexidade brasileiras a uma matriz analítica monocausal moralista.
Esse empobrecimento analítico é um instrumento importante para a manutenção conservadora das relações de produção e das mobilidades como estão estruturadas e institucionalizadas. Longe de ser a estrutura tributária, a exploração, o trabalho e a transferência de renda de trabalho para rendas de capital, a corrupção remete à população a crença da tirania do status quo friedmaniano, na qual a corrupção viria necessariamente e exclusivamente do Estado. A solução seria a sua imediata redução ou até mesmo a sua extinção. Não à toa, e muito menos por coincidência, em último lugar na pesquisa como medida prioritária está o investimento em assistência social.
A crença na tirania do status quo friedmaniano é a matriz que unifica todas as fakenews, como ocorre no desastre climático-ambiental no Rio Grande do Sul, em que o Estado seria ineficiente e incapaz apesar da “alta taxação” e do “quantum perdido pelo estado sul-rio-grandense para a União no sistema distributivo”, positivando-se apologeticamente o trabalho voluntário (individual e antiestatal) do “povo” como política. Mas o que poderia levar à melhoria da vida das pessoas? Em primeiro lugar, segundo a pesquisa, a fé religiosa, seguida de estudos. Em antepenúltimo, em oito requisitos pré-definidos, está o acesso à aposentadoria.[2]
Esses dados corroboram uma pesquisa feita pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação intitulada Percepção pública da C&T no Brasil – 2019, que analisa a percepção da população sobre a imagem da ciência e do cientista. Em 2015, a mesma pesquisa constatou que 19% das pessoas enxergavam malefícios à ciência; já em 2019 saltou para 42%. Outro dado relevante é que o percentual de pessoas que consideram cientistas pessoas que servem a interesses econômicos e produzem conhecimento em áreas nem sempre desejáveis saltou de 7% para 11% nas mesmas datas, sendo que chegou a ser 5% em 2010.
Já o percentual de pessoas que consideram cientistas produtores de conhecimentos úteis à humanidade caiu de 52% para 41% nas mesmas datas, sendo que em 2010 estava em 55,5%. O que aconteceu na pandemia foi construído na década anterior.
A percepção de que é possível romper a pobreza por meio da fé religiosa prosperou como nunca neste século, notadamente sob os governos petistas, sem dúvida alguma. Um dos equívocos nas análises sobre conservadorismo contemporâneo, além de não o analisar historicamente, dando a entender que surgiu de forma espontânea ou maquiavélica a partir de uma intervenção predominantemente estrangeira, consiste em posicionar as igrejas neopentecostais a um lugar-comum do simples e mero fundamentalismo fora dos aparelhos do Estado.
Essa é uma perspectiva que tem o objetivo de não reconhecer o óbvio: as alianças com grupos sociais conservadores cujas histórias estão inscritas em todos os golpes institucionais ao longo dos séculos XIX e XX. Dos militares aos religiosos, dos financistas à FIESP, de emissoras a setores da classe média tradicional.
Mas foquemos no neopentecostalismo, um novo ator dos grupos socialmente conservadores. Se o empreendedorismo é o projeto político do neoliberalismo para a classe trabalhadora, não há nenhuma outra organização que realiza melhor esse projeto de poder do que as igrejas neopentecostais. Ela substituiu os sindicatos partir de 2003 e obteve a sua grande vitória com a Reforma Trabalhista de 2017, a qual sacramentou o fim da maioria dos sindicatos, seja pela precarização e fragmentação da classe trabalhadora, seja pela abrupta diminuição de recursos financeiros transferidos da União aos sindicatos – redução de 99% de 2017 a 2023. Por isso, é preciso compreender a sua principal teologia, a Teologia da Prosperidade.
2.
A Teologia da Prosperidade não foi construída à luz do corolário neoliberal, o que não significa que não se vincule ontologicamente ao neoliberalismo. Hoje vincula-se como um belo casamento cristão. O nascimento da Teologia da Prosperidade remonta a Essek William Kenyon e de seu seguidor Kenneth Hagin, os quais criaram a confissão positiva a partir do Evangelho segundo São Marcos 11:23-24, na qual permitiu a interpretação de que a fé é a base da Confissão Positiva.
Em um país católico como o Brasil, é plenamente razoável que boa parte da população tenha passado por um confessionário, ou se não, que tenha em mente a confissão católica por meio de filmes e novelas. No confessionário, o pecador confessa os seus pecados, e por serem pecados, são negativos. Pode-se dizer que essa é uma confissão negativa, segundo os preceitos de parte significativa do neopentecostalismo. A confissão positiva decorre da constatação de que qualquer sofrimento reflete falta de fé, devendo-se trazer a público o que se testemunha positivamente, na medida em que a confissão é um ato de fé.
Sendo assim, a característica do bom cristão é o sucesso, enquanto a pobreza e o fracasso são as faces da falta de fé, pois o testemunho do positivo é a base para a negação do indesejado (SILVEIRA, 2007).[3] Em outras palavras, se na confissão negativa o pecado traz a culpa, na confissão positiva o testemunho traz o orgulho.
A descrição de Paulo Romero, então diretor do Instituto Cristão de Pesquisas (ICP), uma espécie de organização com perfil acadêmico-teológico que objetiva a realização de pesquisas na perspectiva evangélica, sintetiza conceitualmente a confissão positiva e a sua relação com a teologia da prosperidade:
Conhecido popularmente como a “teologia da prosperidade”, esta corrente doutrinária ensina que qualquer sofrimento do cristão indica falta de fé. Assim, a marca do cristão cheio de fé e bem-sucedido é a plena saúde física, emocional e espiritual, além da prosperidade material. Pobreza e doença são resultados visíveis do fracasso do cristão que vive em pecado ou que possui fé insuficiente (ROMERO, 1993, p. 5).[4]
Em seu livro Supercrentes: o evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade, Paulo Romero reconstrói a importância de Kenneth Hagin para a construção teológica da Confissão Positiva,[5] não sem apontar algumas abstrações sintetizadoras que conseguiu estabelecer, tais como a que boa parte do movimento da prosperidade declara que a enfermidade advém do Diabo (ROMERO, 1993, p. 33), que os verbos “pedir, rogar e suplicar” foram substituídos por “exigir, decretar, determinar e reivindicar” (ROMERO, 1993, p. 36), e que Deus é representado na prosperidade.
No livro New Thresholds of Faith, Hagin[6] (1990, p. 55) enuncia o raciocínio que fundamentaria a Teologia da Prosperidade: “Cristo nos redimiu da maldição da pobreza. Ele nos redimiu da maldição da doença. Ele nos redimiu da maldição da morte – morte espiritual agora e morte física quando Jesus voltar. Não precisamos ter medo da segunda morte. (…) A Escritura do Novo Testamento, terceiro João 2,[7] concorda que Deus deseja que tenhamos prosperidade material, física e espiritual, porque diz: “Amado, desejo acima de tudo que você possa prosperar e ter saúde, assim como a sua alma”. Muitas pessoas têm a impressão de que qualquer promessa na Bíblia de bênção e prosperidade material se refere apenas aos judeus. No entanto, este versículo foi escrito para os cristãos do Novo Testamento”.
Kenneth Hagin termina a lição com a seguinte afirmação, usada também por Romero (1993): “Deus quer que Seus filhos comam melhor, Ele quer que eles usem as melhores roupas; Ele quer que eles dirijam os melhores carros; Ele quer que eles tenham o melhor de tudo” (HAVIN, 1990, p. 55).
3.
A Teologia da Prosperidade é uma construção teológica que consiste na edificação do ato de fé em oposição à maldição. Essa construção permite politicamente que a Teologia da Prosperidade seja extremamente mundana, pois dialoga abertamente com os problemas e as vicissitudes do cotidiano. Em outras palavras, é uma construção de um projeto de sociabilidade que tem um projeto de poder para os trabalhadores mais efetivo do que a Encíclica Mater et Magistra no começo do século XX, a qual estabelece que burguesia e trabalhadores devem viver em regime de solidariedade em que a propriedade privada é um direito natural pertencente à burguesia que deve ser exercido para o bem de todos; ou mesmos dos sermões de Antônio Vieira para escravizados, em que o martírio consistiria na chegada imediata ao paraíso.
É mais efetiva porque viabiliza ideologicamente a saída dos trabalhadores da classe que sofre e dá uma alternativa existencial ao martírio referindo-se ao acesso historicamente negado aos mecanismos das mobilidades econômica e simbólica. A ideia de que Jesus sofreu pelo humano, não cabendo mais ao humano sofrer, expressa rigorosamente as agruras e os desejos dos trabalhadores submetidos à extrema exploração.
Kenneth Hagin se fundamenta em Marcos 11:23 para dissociar o dizer do orar. Essa é uma dissociação importante que é seguida por boa parte das igrejas neopentecostais. Seguiremos rigorosamente o raciocínio do pastor em A fé para remover montanhas,[8] especialmente no capítulo 6, A fé para finanças, só com uma palavra. A palavra é a expressão, o meio e o fim, da confissão positiva.
Em Marcos 11:23, na obra de Kenneth Hagin, está: “Porque na verdade nos digo que qualquer que disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar em seu coração, mas crer que fará aquilo que diz, tudo o que disser lhe será feito”. Hagin faz uma dissociação entre dizer e orar, especialmente no capítulo 5, concluindo que crer não é o suficiente. Assim sendo, o crente deve falar, apalavrar, emitir o verbo a Deus, especificando o que deseja. Continua Kenneth Hagin (s.d., p. 98), “quando você crê fortemente que Deus lhe dará alguma coisa, não a receberá necessariamente por isso. Jesus não disse: ‘… tudo o que crer lhe será feito’, mas: tudo o que disser lhe será feito”.
O que for dito deve ser sempre positivo, seja um pedido ou um testemunho. Kenneth Hagin (s.d., p. 100) recomenda que não se dê mau testemunho, uma vez que o “crente não deve ser traficante de dúvidas, assim como não deve ser traficante de drogas”. As dúvidas, por mais que não sejam crimes, “não deixam de ser pecaminosas”. A dúvida aqui é transformada em pecado, ou algo que pode levar ao pecado. O que há, ironicamente a Martinho Lutero, é a reafirmação do dogma cristão na figura do pastor e de sua capacidade de interpretação, como a dissociação feita entre dizer e orar, o que é rechaçado por Romero através da elucidação do eterno problema da tradução.[9] Não basta orar, mas falar que recebeu. Portanto, é preciso testemunhar, realizar a confissão da fé, “e não à confissão do pecado”, que “deve ser esquecido, assim como Deus o esquece” (HAGIN. s.d., p. 107).
A quem assiste pela televisão os cultos ou simplesmente nota os colantes nos carros com os dizeres “Pertence a Deus”, “Presente de Deus”, “Nas mãos e nas palavras de Deus”, “Foi Deus que me deu”, entre outros, observa um testemunho tão ou mais importante do que a oração, testemunha um rito da fé, como os War boys deMad Max: estrada da fúria, que antes de fazerem o ato mais alto da vida, dá-la, precisam oferecer o testemunho aos colegas sob o risco de não entrar em Valhalla.
Em seguida Kenneth Hagin apresenta fatos pessoais como prova da confissão positiva baseada em Marcos 11:23: “Certa vez, há muitos anos, precisava de $1.500 até ao início do mês. Disse, portanto: “Antes do dia primeiro do mês que vem, terei $1.500. Continuava dizendo assim, em várias ocasiões, na oração. Só repetia a mesma afirmação: “Antes do dia primeiro do mês de que vem, terei $1.500”. Pois bem, chegada aquela data, eu tinha $ 1.580 – oitenta dólares mais do que reivindicara! Foi o Senhor quem me ensinou como aplicar a minha fé às finanças. Levei anos para perceber o fato. Como moço batista, tinha sido salvo, e depois curado pelo poder de Deus. Mas nunca pensei em usar a minha fé além da salvação e da cura” (HAGIN, s.d., p. 108).
Kenneth Hagin teria tido muitas complicações em sua infância e teria sido curado por intervenções divinas. Segundo o pastor norte-americano, em um determinado momento em sua vida, Deus havia lhe falado: “A fé é a mesma em todos os âmbitos e em todas as áreas. Mas você emprega a fé somente em se tratando da salvação, do batismo no Espírito Santo, e da cura divina. Mas a fé é a mesma também na área financeira. (…) Se você precisasse da cura para seu próprio corpo, você a reivindicaria pela fé, sairia para proclamar publicamente que você foi curado, e continuaria suas pregações. E, muitas vezes, no passado, todos os sintomas desapareceriam enquanto você pregava. Você precisa fazer a mesma coisa quando se trata das finanças” (HAGIN, s.d., p. 111).
4.
Independentemente da matriz teológica, o fato é que a Teologia da Prosperidade faz uma divisão nítida e explicita. Ricos e pobres sempre existiram e sempre existirão. Ricos são bem-aventurados porque possuem a fé, e foram agraciados da mesma forma que seriam se fosse uma enfermidade. Miseráveis e enfermos vivem sem fé, e só podem mudar de vida se e somente se se submeterem ao império da fé cristã por meio da confissão positiva. Nesse sentido, a maldição é um elemento fundamental da construção da fé.
A visão que parte das igrejas neopentecostais possui das religiões de matriz africana advém da ideia de que seus praticantes não estão apenas distantes da fé, mas em situação de amaldiçoamento. Da mesma forma, das religiões que decorrem do continente africano, onde sobreviveria a maldição sobre Cam, como defendeu e defende o Pastor e deputado Marco Feliciano.[10] A mesma visão racializada é verificada por estudos sobre a visão das igrejas neopentecostais sobre as religiões de matriz africana, em que são acusadas de serem espaços ideais para a propagação de possessões demoníacas.
Há a criação de um inimigo comum que unificaria os cristãos brasileiros, como atesta Mãe-de-santo, publicado em 1968 por Walter Robert McAlister, fundador da Igreja Pentecostal de Nova Vida no Rio de Janeiro, e Orixás, caboclos & guias. Deuses ou demônios?, de Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus.[11] A exportação de igrejas neopentecostais ao continente africano não é mera coincidência, mas um elemento de um projeto político-teológico que enxerga o continente africano, o africano e o negro como elementos propícios à possessão demoníaca, em que a fé livraria todos do amaldiçoamento e se transformaria em exemplo da universalidade da fé neopentecostal.[12]
Vamos entender o modelo criado no Brasil e o exportado, pois ele responde em boa medida pela ascensão do conservadorismo entre os trabalhadores. A pobreza é uma resultante da falta de fé. Diante desse fato, faz sentido as igrejas neopentecostais construírem alguma tecnologia para o enriquecimento para além do Dizer. Em um contexto de ascensão da autoajuda e do empreendedorismo, não é muito difícil irmanar o útil ao agradável na Teologia da Prosperidade.
A Igreja Universal do Reino de Deus tem uma sessão específica em seu jornal, Folha Universal – publicada periodicamente desde 1992 –, chamada Sucesso Financeiro. Na edição de 17 de novembro de 2019, a empresária Pamela Rivelles, que era empregada – na seção cujo título é “De desempregada à empresária” – afirma que “escutava a Palavra e pensava que não poderia continuar pensando pequeno”, pois “tinha de ter algo que glorificasse a Deus”.
A tecnologia desenvolvida pela igreja chama-se Fé Inteligente. A partir das leituras, é de difícil conceituação. O desapego à exatidão tem o ponto positivo de explicar o fracasso, pois sempre existirá algo que não foi feito por aquele que não foi agraciado com dinheiro. Para Edir Macedo, fé não é sentir, exacerbar a emoção em um show, pois “é possível ver vários exemplos de que a fé bíblica não tem nada a ver com sentimentos ou emoções”. Para o pastor, tais demonstrações de fé devem “ser descartadas, pois o que vale é a certeza na Palavra do Altíssimo”.
O Bispo acrescenta que esse é o motivo da vida de muitas pessoas que creem em Jesus ser devastada pelos fracassos. O problema está, justamente, na forma como conduzem sua fé e o relacionamento com o Altíssimo.
Enquanto estão na igreja, ficam felizes, pois, aparentemente, sentem a presença de Deus. Mas, quando estão fora, sozinhas, caem em desespero porque só sentem os problemas e as tribulações.
“Por isso, não basta vir à igreja, você deve manter essa chama acessa, crer que Ele é com você. Essa fé é que faz a diferença e lhe sustenta. O mal não tem poder sobre a pessoa que carrega a certeza de que Deus é com ela”, ensinou.[13]
O fracasso daqueles que visivelmente possuem fé está explicado por uma conceituação heterodoxa e abstrata sobre o que é a expressão da fé, em que o fracassado sempre pode ser convencido de que fez ou não fez algo que explica o seu suposto fracasso. Por óbvio, os casos anunciados na Folha Universal são os de sucesso, unindo o corolário da Confissão Positiva com a necessidade do marketing.
A Fé Inteligente pressupõe o que chama de a Aliança com Deus, segundo a qual nada mais é do que uma sociabilidade ascética à luz da interpretação pentecostal e neopentecostal. Segundo a edição de 10 de novembro de 2019 da Folha Universal, é baseada em sete pontos: (1) decidir entregar a vida a Deus; (2) cultivar disposição para pautar a sua vida na Palavra de Deus; (3) obediência à Palavra de Deus; (4) abandonar os antigos hábitos; (5) fortalecer a fé diariamente; (6) confiar em Deus em todos os “desafios”; e (7) praticar a fé inteligente.[14]
Como dito, não há uma explicação formal e conceitual do que é Fé Inteligente. Normalmente, inclusive pelos inúmeros vídeos disponíveis, há mais exemplos do que conceituação clara e formal, a despeito do argumento de Edir Macedo sobre a polarização entre razão e emoção no âmbito da fé. Vamos ao exemplo da matéria em questão.
Um casal detentor de uma empresa de seguros teria voltado a atrair clientes após um período de crise, com o fechamento de um contrato com um condomínio e a atuação ativa da esposa, que estava conseguindo clientes para a empresa em sua área de atuação, a advocacia. Ambos creditam a mudança ao uso da Fé Inteligente. Diz o marido: “Deus se manifestou a partir de nossas atitudes. Ela começou a se mover e já estão aparecendo clientes”. O semanário afirma “as conquistas que ele e a esposa tiveram neste ano estão relacionadas à prática da Fé inteligente”. Marcos confirma, assegurando que a visão dele mudou, já que “o Espírito Santo está comigo me dando direção”.
O Bispo Allan Sena relata a importância da Fé Inteligente, e que a fé por si não é fator suficiente para obter o sucesso financeiro tampouco o esforço no trabalho, para os quais “o problema não é a falta de Fé”, mas o uso “de uma maneira inteligente e prática”. Em suma, a “Aliança com Deus tem seus deveres e compromissos que devem ser obedecidos e é isso que ensinamos nas reuniões”, a partir das seguintes etapas: “Em primeiro lugar, a Fé nos ensina a acreditar em nossa própria capacidade. E, em segundo lugar, ela nos faz crer sobretudo em um Deus vivo que é maior do que toda má situação vivida. Por isso que, ainda que os problemas que enfrentamos sejam maiores do que a capacidade humana, sabemos que Deus tudo pode e tudo consegue”.
“Acreditar em nossa própria capacidade” é um libelo da autoajuda e das pseudoteorias do poder da mente. A reportagem seguinte, pertencente à sessão Sucesso Financeiro, apresentada após a reportagem de capa convidar a todos que desejam “firmar” um pacto com Deus a comparecerem a uma igreja, possui o singelo e surrado título de escolas empreendedorismo e coaching Mais que a obrigação. O texto defende a ideia de que para que o indivíduo cresça no trabalho é preciso possuir uma postura que vá além da obrigação contratual. Para reforçar a ideia, usam a história de Greg Rogers, o qual teria criado uma bebida que aumentou o faturamento da rede Starbucks, e o pensamento de dois professores da Universidade da Carolina do Norte e de Notre Dame, Thomas Bateman e J. Michael Crant.
Depois das citações dos professores, cujo lugar-comum é o do empreendedorismo mais barato, como “o que faz mais que a obrigação promove reformas construtivas; o que não faz segue o fluxo passivamente no piloto automático”, o texto afirma que a Bíblia confirma tais ensinamentos com a seguinte passagem de Mateus 25.14-30: “Nela, há a história de três servos que recebem de seu senhor – que ia viajar –, respectivamente, um, três e cinco talentos (moeda da época) para guardarem. Os dois receberam três e cinco talentos dobraram a quantia com aplicações. O que recebeu um, com medo de perdê-lo, escondeu-o e não teve nenhum rendimento. Esse foi rejeitado pelo patrão quando ele voltou de viagem, enquanto os outros dois receberam privilégios e evoluíram no trabalho”. O Senhor Jesus dá novamente na Bíblia não só um conselho sobre como reagir diante das adversidades, mas sobre a importância de se esforçar para obter êxito: “E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas” (Mateus, 5.41).
E chegamos à conclusão: “Quem faz algo passivamente, só por ter obrigação, cumpre a primeira milha como todos e não consegue se destacar no meio da multidão que disputa um espaço, mas é na segunda milha que quem tem mais a oferecer sobressai”.
5.
Como visto, a teologia transformou-se em coaching ou fomentador da disputa entre trabalhadores no mundo do trabalho, em que uns chegam à segunda milha e são agraciados com bens materiais enquanto a maioria não passa da primeira milha. Lógico que no exemplo dos talentos, moeda da época, caberia um questionamento sobre a distribuição desigual assim como sobre o fato de ser mais fácil se desfazer de um talento quando se tem três do que quando se tem um, mas a narrativa bíblica é encaixada para reforçar a verborragia da meritocracia e do empreendedorismo, o que faz com que tais questionamentos pouco importem.
Por fim, a reportagem indaga: como se destacar da multidão? Segundo a reportagem, há seis itens que ajudariam a se destacar à luz da Aliança com Deus e da Fé Inteligente: foco, seja sempre ativo, perceber que alguém sempre repara em quem se esforça, explorar as qualidades e aprender sobre o trabalho. O último é destinado aos “empregadores”, a saber, a busca de funcionários com este perfil. Portanto, se o trabalhador não tiver esse perfil para um empregador vinculado à Fé Inteligente, será provavelmente preterido, restando os trabalhadores embebidos da nova necessidade de fazerem mais do que a obrigação exige.
Com um pouquinho de tino, dá para montar um negócio em que patrão e trabalhadores possuem o mesmo perfil e objetivo, e por que não, todos evangélicos e leitores ávidos do Sucesso Financeiro, no qual as contradições entre capital e trabalho, como direitos trabalhistas, seriam arbitradas pelo pastor.
A matéria de capa da edição de 17 de novembro de 2019 da Folha Universal, na qual o título é “Quem usa a fé no altar se torna um realizador de sonhos”, inicia-se com a mesma simbiose entre fé e empreendedorismo nas matérias já analisas. O Bispo Odivan Pagnocelli faz a seguinte afirmação: “Desde a infância temos muitos sonhos, mas, à medida que vamos crescendo e nos tornamos adultos, nossos sonhos também amadurecem. E, se há muitos que dedicam boa parte da sua vida a alcançá-los, outros se frustram conforme o tempo passa e os sonhos se tornam cada vez mais distantes. Nos deparamos com vários tipos de sonhadores: os que têm sonhos e não fazem nada para concretizá-los e os que desistem no meio do caminho. Somente conseguem realizá-los os que perseveram até o fim e não se importam com os sacrifícios que terão de fazer para isso”.
O bispo lembra que a Bíblia possui muitos homens que sonharam e se destacaram, como Moisés, que teria libertado o seu povo por ter sonhado e se sacrificado. Por conseguinte, “com a força do braço, o sonho está sujeito a todas as fragilidades terrenas”, mas se “os sonhos realizados no Altar são concretizados em parceria com o Altíssimo”, quem “poderá detê-Lo?”.
Seguindo o modus operandi de todos os artigos, o texto pula para os exemplos, os testemunhos da Confissão Positiva. São quatro ao todo, mas se citará apenas um, o do empresário Samir Crema. Quando vendia consórcios, viu uma “oportunidade”, a saber, o “Altar do Sacrífico”. Diz ele que a oportunidade superou uma sina bourdieuneana, digamos assim: “Ninguém na minha família tinha formação superior nem havia um empresário em quem eu pudesse me espelhar”; justamente por “essas razões, eu não tinha sonhos e tinha perdido expectativa de um bom futuro”.
E continua: “Depois de ir para o Altar, eu tive a visão de ser grande, de me tornar um empresário. Abri uma loja de móveis para festas e, pouco tempo depois, me tornei fabricante. Hoje minha empresa atende todo o Brasil e fornece móveis para salões de festas, clubes, hotéis, bares, restaurantes e escolas”.
Ao longo da reportagem, fotos das pessoas, a maioria casais, ao lado das empresas e propriedades, como grandes casas com piscina, reforçam a ideia do casamento como elemento da prática da fé e induz a constatar que a riqueza material é inerente à prática da fé.
O fato inconteste é que a Teologia da Prosperidade é um projeto de poder e de sociabilidade extremamente efetivo, seja porque se coaduna com o neoliberalismo mais cru, seja porque apresenta um projeto de redenção à classe trabalhadora segundo o qual os indivíduos podem se salvar da miséria por meio da fé. Por óbvio, todos não poderão ficar ricos, nem mesmo os fiéis, mas a explicação do fracasso está dada pela subjetividade da aplicação equivocada ou insuficiente da fé no cotidiano miserável e desigual.
Que trabalhador informal, precarizado e sem esperanças não entraria de cabeça em tal teologia? Ao entrar na teologia, o desesperado mergulha na ideologia neoliberal, transformando a sua vida em um constante paradoxo existencial amainado pelo exorcismo profético e empreendedor da realidade. A Teologia da Prosperidade pariu o trabalhador que trabalha para não ser trabalhador, o trabalhador que não deve pertencer à classe que sofre porque Jesus já sofreu.
(*) Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo (Alameda).