quarta-feira, dezembro 24, 2025
spot_img
spot_img

CAPITALISMO DIGITAL – Mais valia onírica

@viniciocarrilhomartinez

É bem provável que muitas outras abordagens, em linhas diversas desta aqui, tenham adotado esse título ou assemelhado, a fim de esboçar essa pretensão de colocar um facho de luz em algo tão nebuloso (até metafísico, no mal sentido) como a extração, exploração da mais valia neste final de primeiro quartel do século XXI.

Até o século XX, digamos assim, a questão era mais palpável, visível, demonstrada a partir do conhecido “chão de fábrica”. Esse chão de fábrica persiste, em todos os níveis da cadeia comestiva do capital. Aliás, é a regra absoluta, aninhada no Princípio da Hierarquia, é a própria Lei do mais farte – e é uma regra, em absoluto é a exceção.

Porém, o que mudou e de modo muito assinalado foi o modelo de produção – se antes era baseado na industrialização, hoje é demandado pela financeirização, pelo capital especulativo e improdutivo. Não é segredo o crescente processo de desindustrialização de vários países, incluindo o Brasil.

Aí está a hegemonia do capital, no rentismo e na base do Capitalismo de dados (em que “o produto é você”), e nos Grupos Hegemônicos de Poder que os representam; predominantemente como pontas de lança das Bets, das Big Techs, das Big Datas/Data Centers – o novo BBB.

Assim, a regra da exploração está acentuada, por exemplo, na exploração/extenuação do trabalho digital, das trabalhadoras e dos trabalhadores expropriados de expectativas para além da sobrevivência que são escravizados nas rotinas impostas pelo novo BBB.

Mas, é preciso destacar que esta é a regra (não a exceção do capital), com a exceção diagnosticada, em outro exemplo, na “exploração do trabalho análogo à escravidão”: são os operários do chão de fábrica, da construção civil, os lavradores, as trabalhadoras residenciais resgatas todos os dias pelo Ministério Público do Trabalho, sem registro algum e muitos que sequer têm banheiro químico.

Essa condição da exploração do trabalho análogo à escravidão, sim, é a exceção, uma vez que se destaca um modo de produção anterior ao capitalismo, tão primitivo quanto a Acumulação Primitiva de Marx[1] e do Fausto[2]. Então, o que sugerimos no título?

Apontamos para outro fenômeno social, sistêmico, sistemático (societal) que deve ser somado a tudo isso; trata-se da maior e mais avassaladora captura da subjetividade pelo Capitalismo Digital[3].

Lembremo-nos de uma cena comum, que todo mundo já viu ou praticou: a pessoa acorda e corre para checar suas redes sociais (ela nem se levantou) ou a pessoa mal se deita e abre as mesmas redes sociais para “se ver”. A pessoa dorme, sonha, projeta, projeta-se, esboça sentimentos, sensações, aspirações, expectativas (tudo isso e mais), e acorda dentro da mesma bolha em que se colocou: há uma autoexclusão.

Vive-se nas bolhas e se vira as costas para o mundo real. Antigamente, era chamado de alienação; hoje pode ser entendido como captura e digitalização da subjetividade e, portanto, identificação digital “com os outros/as que sejam semelhantes a si”.

Esse deitar (mal dormir), acordar, ruminar pensamentos incompletos, minar visões de mundo já muito parciais, deitar de novo, acordar outra vez, tudo dentro do imaginário digital (cada vez menos em contato com a realidade decisiva), destilar “tudo de si” nessas redes sociais é o que chamamos de mais valia onírica: tudo, dos sonhos e das projeções, das fantasias, às dores do “mundo real”, tudo está postado, checado, sendo consumido inúmeras vezes, e cada vez mais, à medida em que aumenta o engajamento da pessoa digitalizada.

Pois bem, esse é o mundo das Big Techs: lucrar exponencialmente com a exposição dos sonhos (literalmente) de quem se expõe, vender os dados, os anúncios, anunciando planos de expansão de engajamento (você pagaria um centavo para cada clic novo feito “exclusivamente” para você).

Vejamos: nós pagamos para que essas empresas lucrem (sem risco de retorno) com as nossas aparições, no entanto, em contrapartida, nossos sonhos (com grande risco de não-retorno) alimentam o capital hegemônico.

Bauman[4] chamou de “servos voluntários” – em consonância a La Boetie[5] – os seres cada vez menos sociáveis que aceitam livremente a exploração dos seus sonhos, de toda a sua subjetividade onírica, pelas redes cada vez menos confiáveis, bem ao feitio de redes antissociais.

Portanto, uma das grandes diferenças do Capitalismo industrial para o Capitalismo de dados (componente do Capitalismo Digital) está no deslocamento da base de sua materialidade (o anterior chão de fábrica) para o interior de “cada pessoa antenada”, plugada, conectada – e vitimada pela ansiedade em ver seus dados serem comercializados sem retorno algum.

Do século XX (e parte dos anteriores) até a nossa atualidade, a materialidade em que ocorria a extração do trabalho vivo (sua confirmação mercadológica por meio do trabalho morto: na mercadoria) foi estiolada, pulverizada por cada clic que se dá pelo mundo afora: por isso “o produto é você” (nós).

Se antes eram milhões de trabalhadoras e de trabalhadores pelo mundo afora, sendo extorquidos na sua força de trabalho (no chão de fábrica), hoje são bilhões de “servos involuntários”. As bolhas de clausura (autobolhas) ainda se encarregam do desentranhamento da realidade, da dissociação que impede o acúmulo e o avanço de qualquer “consciência de classe”: primeiro porque somos voluntariamente extorquidos, segundo, porque as bolhas aprisionam e impedem qualquer vínculo significativo ao florescimento da Inteligência Social.

Com rompantes aqui e ali, e que muitas vezes não passam os limites (prescrições) de revoluções coloridas – e em que pese terem defenestrado poderes absolutistas (ali e acolá) –, de certa forma, apenas firmam ou reforçam compromissos com o propalado Capitalismo de Digital: via de regra, as insurgências se devem aos reclamos juvenis porque algumas redes foram bloqueadas pelo poder de então e, muito, muito raramente, voltam-se contra os fatores de indignidade e de indigência do povo, dos trabalhadores e das trabalhadoras sujeitadas à exploração do trabalho análogo à escravidão.

Nos habituamos rotineiramente à exceção, à normalização da exceção[6]. Não há proscrição da prescrição por que estamos limitados, estacionados, na autonomia. Não há responsabilização, nem do novo BBB, nem individuais. Não há emancipação, exatamente, porque nos limitamos à autonomia.

Outro problema grave está no tempo. “Não temos tempo”, isolamento, distanciamento (a concentração obrigatória ao pensamento), para alcançarmos mais clareza. Nós “pensamos” que as coisas são imediatas (um clic), mas a vida, as ocorrências, as transformações, não são instantâneas.

O mundo atual não reconhece mais a maturidade. Tudo é fugaz, porque “Tudo que é sólido desmancha no ar’. Mas essa história quase mais ninguém entende, decifra. Muitos ainda vão considerar como se fosse a fala de um filme de ficção, distopia pós-moderna; quando, na verdade, é o oposto – é a modernidade (em que se liga a nossa realidade) pondo fim às tradições.

Entretanto, e de todo modo, não há proscrição da prescrição porque sequer temos consciência do status de servidão conscienciosa. Não há proscrição da prescrição porque é imposta a autonomia, e que, sem auditoria, não supera a autocracia[7].

 

[1] MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

[2] Historia del Doctor Johann Fausto – anónimo del siglo XVI. Siruela: Madri, 2003.

[3] https://www.gentedeopiniao.com.br/politica/vinicio-carrilho/conceito-de-capitalismo-digital. Acesso em 24/12/2025.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

[5] LA BOETIE, Ètienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa: Edições Antígona, 1986.

[6] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação para além da exceção*: Educação para além do capital, Educação após Auschwitz, e depois de Gaza, Educação Política, Educação em direitos humanos, Educação Constitucional. KDP – Amazon: São Carlos, 2025c. Acesso: https://a.co/d/3upl65K.

[7] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação e Sociedade*: Sociologia Política da Educação. São Carlos: Amazon, 2025d. Disponível em: https://www.amazon.com.br/dp/B0FXSXHN7R.

Compartilhe
Artigo anteriorIndulto de Natal
Próximo artigoA jornalista e o juiz

Related Articles

- Advertisement -spot_img

Colunas

A jornalista e o juiz

Justiça não aceita “off” Por Alex Solnik, jornalista, é autor de "O dia em que conheci Brilhante Ustra" (Geração Editorial) Minha colega de profissão, Malu Gaspar,...

CAPITALISMO DIGITAL – Mais valia onírica

@viniciocarrilhomartinez É bem provável que muitas outras abordagens, em linhas diversas desta aqui, tenham adotado esse título ou assemelhado, a fim de esboçar essa pretensão...

Indulto de Natal

Quando chega essa época, penso em algumas coisas: 1. Aprendi quando criança que o espiritualismo tem o princípio de que não há pena perpétua: todos...

Entre a norma e a prática: neurodiversidade na educação

Ester Dias da Silva Batista As compreensões sobre a neurodiversidade têm sido ampliadas, ao buscar práticas pedagógicas que reconheçam os diferentes modos de se desenvolver...

Centrão reconhece indícios de corrupção de Sóstenes Cavalcante e Jordy

Apesar do PL falar em “perseguição”, parlamentares reconhecem indícios relevantes em operação que mirou Sóstenes Cavalcante e Carlos Jordy  A mais recente operação da Polícia...