segunda-feira, novembro 17, 2025
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Quem será o próximo?

Por Ronald Pinto

Nas últimas duas décadas, os movimentos sociais globais passaram por uma transformação radical. A militância territorial e as organizações de base cederam espaço a uma ecologia informacional dominada por grandes corporações digitais – as Big Techs – que hoje hospedam e condicionam a vida pública. Essa transição é particularmente relevante para as gerações Millennials e Z, nativas digitais que dependem quase que integralmente das redes sociais para consumo de informação, sociabilidade e ação política.

Ao se conectar com teorias clássicas de ação não violenta, como as de Gene Sharp, essa infraestrutura privada criou um ambiente superpotencializado para a eclosão de revoltas. No entanto, o paradoxo é evidente: tais levantes frequentemente emergem sem um conteúdo de classe definido, despolitizados e marcados por identidades fluidas – um terreno fértil para manipulações externas e narrativas virais. Enquanto isso, os Estados nacionais, como o Brasil, permanecem aferrados a lógicas tradicionais, como as pesquisas de opinião, ignorando que o verdadeiro campo de batalha se deslocou para o interior das plataformas digitais, onde ferramentas de mobilização pré-política fermentam em silêncio.

Plataformas como Facebook, Instagram, TikTok, X/Twitter, YouTube e Telegram converteram-se nas arenas centrais do debate político. Apesar da percepção de que são espaços abertos, são, na prática, propriedades privadas regidas por algoritmos opacos que determinam:

  • O que se torna viral,
  • Quem ganha alcance,
  • Quais temas ascendem à prioridade,
  • E como as emoções coletivas são amplificadas ou suprimidas.

Para as gerações Y e Z, hiperconectadas e habituadas ao zapping digital, esses ambientes não são apenas fontes de conteúdo, mas o próprio meio onde sua consciência política é formada – moldada por sistemas que filtram e hierarquizam informações conforme interesses comerciais e geopolíticos. Assim, as Big Techs tornam-se os novos mediadores da consciência coletiva, capazes de modular indignações e canalizar frustrações difusas em comportamentos de massa.

Gene Sharp teorizou sobre a erosão do poder por meio da retirada do consentimento popular, usando ações não violentas, boicotes e desobediência civil. O que ele não previu foi que seus princípios seriam, nas redes sociais:

  • Amplificados por algoritmos,
  • Organizados em tempo real,
  • Replicados em ondas virais,
  • Disseminados sem qualquer estrutura organizacional formal.

Se antes a difusão de métodos de resistência dependia de sindicatos e partidos, hoje esse papel é desempenhado pelo feed. Quando a teoria de Sharp encontra o TikTok, surge um novo tipo de mobilização: espontânea, descentralizada, emocional e impulsionada por símbolos da cultura pop (como as bandeiras de One Piece no Nepal e no México). A ação coletiva deixa de ser uma estratégia política deliberada para se tornar um efeito de rede – um enxame digital guiado por impulsos e afetos amplificados algoritmicamente.

Um traço estrutural das chamadas revoluções coloridas e dos levantes da Geração Z é a ausência de um conteúdo de classe claro. Esses movimentos evocam valores como anticorrupção, transparência e renovação política, mas raramente aprofundam debates sobre:

  • Relações de produção,
  • Desigualdade estrutural,
  • Reformas econômicas,
  • Soberania nacional,
  • Políticas distributivas.

Esse vazio ideológico não é acidental; é funcional para o modelo das Big Techs e para a lógica difusa dos próprios movimentos. A disputa deixa de ser sobre o modelo de sociedade e se concentra no ato de mobilizar-se, na dramaturgia da revolta e na performance da insatisfação. Por não possuírem um epicentro político sólido, tornam-se alvos fáceis de apropriação por potências estrangeiras, ONGs ou partidos, configurando-se como revoltas de alta energia e baixa direção – simultaneamente potentes e frágeis.

Os Estados nacionais ainda acreditam que a temperatura social pode ser aferida por pesquisas de opinião tradicionais. No entanto, a dinâmica digital escapa completamente a esse paradigma. Enquanto governos moderam suas ações com base em números estáveis a partir de institutos de pesquisa como o Datafolha ou Ipec, as redes sociais, sob o controle das Big Techs, estão gerando:

  • Comunidades paralelas,
  • Bolhas inflamadas,
  • Sentimentos de injustiça viralizados,
  • Afetações súbitas que explodem em mobilizações massivas.

Eis o ponto crítico: a Geração Z não precisa estar politizada para derrubar um governo. Basta estar conectada.

Assim como no Nepal, onde o simples bloqueio de redes sociais detonou uma revolta que derrubou o primeiro-ministro, no Brasil ou em qualquer outra democracia, um gatilho banal – uma fala mal interpretada, um vídeo viral, um caso de corrupção superdimensionado – pode gerar uma mobilização monstruosa, despolitizada e imprevisível. O México acaba de ingressar neste mapa de risco. No dia 15 de novembro, manifestações da Geração Z, usando como pretexto o assassinato de uma liderança política, levaram milhares às ruas. O evento rapidamente escalou para a ação de grupos mascarados que tentaram incitar a invasão do Palácio Nacional, em um atentado explícito ao governo de Claudia Sheinbaum – que é alvo de ataques frontais do governo Trump. Este episódio é a materialização do risco: uma centelha de legitimidade (a indignação com um crime) é capturada e direcionada para uma tentativa de desestabilização de um governo soberano.

Estamos, portanto, diante de uma nova forma de poder social: o poder algorítmico de massas conectadas, sem mediação política, sem elaboração ideológica e sem horizonte organizativo.

A combinação entre o controle informacional das Big Techs, a aplicação viral dos métodos de Gene Sharp, a natureza despolitizada dos movimentos e o engajamento emocional da Geração Z cria um ambiente onde mobilizações capazes de desestabilizar governos podem eclodir de forma súbita e incontrolável, como visto recentemente no México.

No entanto, é ingênuo ver essa força como um mero fenômeno espontâneo. A presença dos donos dos algoritmos – os bilionários das Big Techs – no centro de poder dos EUA, inclusive na posse de figuras como Donald Trump, evidencia seu alinhamento orgânico aos interesses do capitalismo global por eles defendido. O Nepal serve como caso paradigmático de um regime substituído para atender a desígnios geopolíticos específicos. O Brasil, por sua vez, já experimentou esse mecanismo em seus estágios iniciais em 2013, um processo que, 12 anos depois, encontra-se drasticamente mais refinado e potente.

A pergunta que se impõe, portanto, deixa de ser se novas tempestades se formarão, mas quem serão os próximos alvos. Governos democráticos que insistem em ler a realidade pelas lentes anacrônicas das pesquisas de opinião ignoram que a verdadeira disputa migrou para o interior das plataformas. É ali, sob seu próprio nariz, que se forjam as crises do futuro, usando a energia genuína de uma geração para promover uma agenda de poder que lhe é, na maioria das vezes, completamente alheia.

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