Os próprios moradores retiraram ao menos 50 corpos de uma região de mata
O número de mortos na operação policial no Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, subiu para 134 após moradores encontrarem dezenas de corpos em uma área de mata na manhã desta quarta-feira (29). A ação, considerada a mais letal da história do estado, foi realizada um dia antes e deixou a comunidade em estado de choque.
De acordo com a advogada Flávia Fróes, que acompanhou a remoção dos corpos deixados pela chacina do governo Cláudio Castro (PL), muitos apresentavam sinais de execução. “Alguns deles têm marcas de tiros na nuca, facadas nas costas e ferimentos nas pernas”, relatou à Folha.
A defensora classificou a ação policial como “o maior massacre da história do Rio de Janeiro” e defendeu a intervenção de peritos internacionais. “A situação exige a presença da Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, afirmou.
O cenário descrito pelos moradores é de horror. Um dos corpos estava sem cabeça, cuja parte foi trazida em uma sacola. Um homem que ajudava na remoção gritou: “é um de cabelo vermelho”, enquanto segurava o corpo que ainda tinha as mãos fechadas, agarradas à grama.
Crianças participaram da retirada das vítimas, incluindo um menino de cerca de nove anos. Uma mulher gritava em desespero: “polícia assassina, cadê meu filho?”.
“Em 36 anos de favela, passando por várias operações e chacinas, eu nunca vi nada parecido com o que estou vendo hoje. É algo novo. Brutal e violento num nível desconhecido”, declarou em entrevista ao G1 o ativista Raull Santiago, que ajudou no resgate.
Segundo ele, os corpos levados à praça não estão na contagem oficial dos 64 mortos divulgada pelo governo estadual. Caso sejam confirmadas as novas mortes, o total de vítimas pode ultrapassar 100.
O governo do Rio havia informado que 60 criminosos e quatro policiais morreram durante a operação, mas o secretário da Polícia Militar, coronel Marcelo de Menezes Nogueira, reconheceu que os corpos encontrados na Praça São Lucas não constam da lista oficial. “Haverá uma perícia para confirmar se há relação entre essas mortes e a operação”, disse.
O traslado dos corpos, segundo os moradores, teve o objetivo de facilitar o reconhecimento por familiares. Ao amanhecer, mulheres choravam e se abraçavam diante dos cadáveres enfileirados.
“Meu filho”, gritava uma delas ao reconhecer o corpo. Em meio a fotógrafos e cinegrafistas, as imagens revelaram um cenário descrito por testemunhas como “uma cena que entra para a história de terror do Brasil”.
A Polícia Civil informou que o atendimento às famílias para o reconhecimento das vítimas será feito no prédio do Detran, ao lado do Instituto Médico-Legal (IML), a partir das 8h. Durante esse período, o acesso ao IML será restrito à Polícia Civil e ao Ministério Público, responsáveis pelos exames periciais. As necropsias de casos sem relação com a operação serão realizadas no IML de Niterói.
Mais cedo, moradores também levaram seis corpos em uma Kombi até o Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha. O veículo chegou em alta velocidade, deixou os corpos na entrada e saiu rapidamente do local.
De acordo com informações publicadas pela Agenda do Poder, os próprios moradores retiraram ao menos 50 corpos da mata, localizada na Serra da Misericórdia, epicentro dos confrontos. Fontes ouvidas pela publicação afirmam que o número de mortos pode ultrapassar 100, enquanto os dados oficiais do governo estadual ainda registram 64 óbitos confirmados. Os corpos foram levados para a Praça São Lucas, na Estrada João Lucas, uma das principais vias da região.
Quatro policiais estão entre as vítimas fatais, e outros nove ficaram feridos. As autoridades afirmam que a operação tinha como alvo o cumprimento de cem mandados de prisão contra integrantes do crime organizado, entre eles Edgar Alves de Andrade, conhecido como Doca, apontado como um dos líderes do Comando Vermelho nas ruas. O Disque Denúncia anunciou uma recompensa de R$ 100 mil por informações sobre o paradeiro do criminoso — o maior valor oferecido desde o caso de Fernandinho Beira-Mar, preso em 2001.
A repercussão do episódio gerou forte reação política e institucional. A Defensoria Pública denunciou supostas violações de direitos humanos e abusos cometidos durante a operação. O governo federal decidiu enviar uma comitiva ao Rio para discutir medidas de segurança pública, após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva convocar uma reunião de emergência com a cúpula ministerial. Já a Câmara dos Deputados antecipou a votação da PEC da Segurança, diante da escalada da violência.
O governador Cláudio Castro solicitou o envio de dez líderes de facções presos para penitenciárias de segurança máxima, pedido que foi atendido pelo governo federal.
No cenário internacional, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos manifestou preocupação com a operação. “Estamos horrorizados com a operação policial em andamento nas favelas do Rio de Janeiro”, afirmou a entidade em comunicado publicado nas redes sociais. A Human Rights Watch também condenou a ação, defendendo uma mudança estrutural na política de segurança do estado. “O Rio precisa de uma nova política de segurança pública, que pare de estimular confrontos que vitimizam moradores e policiais”, declarou a organização.



