Ronald Pinto
O discurso de Luiz Inácio Lula da Silva no ato em defesa da democracia, em 8 de janeiro de 2025, oferece uma reflexão profunda sobre o papel das revoluções e a relação entre as massas populares e as vanguardas políticas. Em um momento em que a democracia é questionada por extremismos e o conceito de revolução muitas vezes é associado a modelos do passado, Lula resgata uma perspectiva que valoriza o protagonismo do povo e a construção coletiva de transformações sociais.
Ao criticar as experiências históricas de revoluções como a Russa de 1917 e a Cubana, Lula reconhece os avanços significativos obtidos em seus contextos, mas destaca que essas transformações foram conduzidas por vanguardas intelectuais e políticas, e não pelos trabalhadores. “Você pega a fotografia da Revolução Russa de 17, não tem um operário na foto. Você pega a fotografia da Revolução Cubana também não tem operário, porque eram os intelectuais políticos, os ativistas políticos, os estudantes, as pessoas com um pouco mais de grau”, afirmou. O presidente sublinha que, historicamente, o trabalhador foi relegado ao papel de força produtiva, sem espaço na liderança das mudanças que, teoricamente, deveriam libertá-lo.
Essa análise aponta para uma crítica central às revoluções vanguardistas: a perpetuação de uma hierarquia de poder em que o povo é apresentado como motivo e sua libertação como objetivo da Revolução mas tratado na verdade como massa de manobra. É comum que aqueles que tomam o poder justifiquem o silenciamento de críticas — inclusive de outros grupos políticos, mesmo de esquerda — com a advertência: “se criticar, é inimigo da Revolução!” Transformações impostas por elites politizadas frequentemente resultam na centralização de poder, substituindo uma forma de opressão por outra.
O discurso de Lula adquire ainda mais densidade ao considerar o exemplo da China, cuja trajetória revolucionária apresenta características únicas. Detentora de uma cultura milenar, marcada por tradições como o confucionismo, a China continuou a evoluir após a revolução de 1949 por meio de reformas internas e processos complexos. O país mesclou planejamento estatal com aberturas econômicas, demonstrando uma flexibilidade ausente em muitos modelos revolucionários ocidentais.
Ao contrário de experiências em que famílias ou líderes de esquerda permanecem no poder por décadas ou até por toda a vida, algumas vezes gerando dinastias, a China promoveu, após Mao, uma sucessão de líderes que implementaram novos modelos de gestão e produção. Esses avanços ocorreram sem abandonar os fundamentos revolucionários e sem recorrer à dominação militar da própria sociedade.
Lula contrapõe esses modelos históricos com sua própria trajetória, destacando que as conquistas democráticas podem ser ferramentas de emancipação popular. “As pessoas não imaginavam que os trabalhadores pudessem organizar um partido e chegar à Presidência da República. E eu sou presidente da República pela terceira vez.” Essa autorreferência não é mero orgulho pessoal, mas um exemplo concreto de como a democracia pode abrir caminhos para os trabalhadores, historicamente excluídos, assumirem posições de liderança e influenciarem diretamente nas estruturas de poder.
O discurso também ressignifica o conceito de revolução. Em vez de vinculá-la exclusivamente à luta armada ou à tomada violenta do poder, Lula demonstra que uma verdadeira revolução só será possível com o amadurecimento da consciência popular. A democracia liberal opera dentro dos limites do capitalismo, funcionando como um processo para definir quais grupos assumem o controle do Estado. Superar esse sistema exige um movimento que parta do povo, e a construção de um partido dos trabalhadores que una setores diversos que lutam por transformações profundas na sociedade é um processo pré-revolucionário. Esse movimento, utilizando as próprias regras da classe dominante, colocou, no Brasil, os trabalhadores no governo, enfrentando duros ataques desde as oligarquias até dos próprios setores vanguardistas, mas, sem dúvidas, avançando profundamente nas condições objetivas de justiça e igualdade para a classe trabalhadora.
Sem essa base de consciência popular, há o risco de reproduzir as mesmas estruturas de dominação que se pretende abolir. Nesse sentido, a defesa de Lula pela democracia não é apenas pragmática, mas ideológica. Ele apresenta a democracia como um espaço para organização, educação e mobilização popular, essencial para construir uma sociedade mais justa e igualitária. Mais do que uma crítica às revoluções vanguardistas do passado, seu discurso é um convite à reflexão sobre o futuro: como garantir que as transformações sociais sejam feitas pelo povo e para o povo, sem que as vozes críticas sejam silenciadas em nome da “pureza revolucionária”?
A história ensina que revoluções lideradas por vanguardas, sem participação ativa das massas, muitas vezes degeneraram em autoritarismo. Exemplos como o stalinismo e os excessos de regimes revolucionários mostram que a concentração de poder em poucos, mesmo com boas intenções iniciais, pode levar à repressão e à alienação das próprias massas que deveriam ser protagonistas.
Lula, com sua trajetória de sindicalista e líder popular, resgata a ideia de que a transformação social não se faz apenas com decretos ou slogans, mas com a construção lenta e contínua de uma consciência coletiva. A democracia, apesar de suas limitações nos marcos do capitalismo, é apresentada como um espaço indispensável para essa construção.
O desafio, portanto, não é apenas criticar o que se apresenta como revoluções no passado, mas evitar repetir seus erros. A verdadeira revolução, como aponta Lula, não é a que parte de uma elite iluminada, mas a que nasce da organização e da conscientização do povo. Afinal, qualquer transformação que não inclua o protagonismo popular corre o risco de ser apenas uma mudança superficial de quem detém o poder.
Que essa reflexão sirva para reforçar o valor da crítica, do debate e da pluralidade em qualquer projeto de transformação social. Pois, se “criticar é inimigo da Revolução!”, o que se constrói é uma ditadura disfarçada de mudança.