As recentes condenações dos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília marcam um momento crucial para a democracia brasileira. No entanto, a questão vai além da simples aplicação da lei. Ela revela um dilema complexo sobre as narrativas que moldaram a percepção de grande parte dos envolvidos, bem como os riscos de uma nova direita radical emergente, que pode ser ainda mais perigosa do que o movimento bolsonarista original.
Os participantes dos atos de 8 de janeiro, na maioria cidadãos comuns com pouca participação política e parcos conhecimentos da legislação, agiram sob a crença de que estavam desempenhando um papel patriótico. Convencidos de que impediriam a ascensão de um “criminoso, ex-presidiário” ao poder, muitos acreditavam estar respaldados por setores das Forças Armadas, das Polícias e agentes de segurança, que, publicamente, têm simpatizado com a extrema direita bolsonarista.
Essa suposição, amplificada por desinformação, levou-os a marchar cegamente para o que agora pode ser visto como uma armadilha política.A ilusão de que uma intervenção militar ou uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) seria acionada para “salvá-los” nunca se concretizou. Pelo contrário, o governo federal tomou a decisão estratégica de não seguir esse caminho. Ao não acatar a sugestão de uma GLO Lula tornou sem sentido a manifestação, mas isso não impediu que muitos dos envolvidos ainda se vissem como mártires de uma causa que não compreendiam totalmente.
A falta de compreensão das acusações que enfrentam reflete o grau de manipulação a que parcela importante desses indivíduos foi submetida. Para eles, não houve crime, mas sim uma tentativa legítima de proteger a nação de uma “fraude eleitoral”. Ao atacar as instituições mais simbólicas do sistema democrático, como o Supremo Tribunal Federal (STF) , o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, encontraram o peso do Judiciário. Contudo, a narrativa de que são vítimas de um sistema corrompido se solidificou entre muitos desses indivíduos, criando um senso de sacrifício que pode ser usado como combustível para novas ondas de radicalização.
O bolsonarismo, enquanto movimento político, está em transição. As condenações não eliminam o potencial de ascensão de uma direita radical ainda mais organizada e articulada. Figuras como Pablo Marçal são exemplos de como esse espectro político pode se reconfigurar. Diferente de Bolsonaro, que se apoiava em estruturas partidárias e alianças militares, Marçal se posiciona como um agente autônomo, livre de vínculos tradicionais e capaz de explorar o desencanto de setores sociais através de discursos populistas e anti-establishment sob o discurso de que “não é um ser político”.
Essa nova direita é potencialmente mais perigosa por sua flexibilidade ideológica e capacidade de mobilização. Ela não depende dos aparatos tradicionais do poder, mas se constrói em torno de líderes carismáticos que operam à margem do sistema partidário, explorando o esgotamento das massas com a política tradicional.
Um dos fatores dessa radicalização é o combate cotidiano contra uma política educacional capaz de formar cidadãos críticos e politicamente conscientes. A ênfase excessiva no empreendedorismo como solução universal para problemas sociais criou uma geração de jovens que se identificam com a lógica neoliberal de sucesso individual, muitas vezes sem questionar suas implicações. Inspirados por figuras como Elon Musk, esses jovens acreditam que o único obstáculo para se tornarem bilionários são os direitos trabalhistas e a regulamentação imposta pelo Estado, perpetuando um ciclo de alienação. O Poder Público que deveria enfrentar esta situação trabalhando coordenadamente por uma educação que forme consciência crítica e avance na compreensão das questões básicas para enfrentar o discurso do ódio assumiu a política educacional como sua sucumbiu ao recuar no enfrentamento às reformas impostas ao Ensino Médio durante o governo Temer e referendadas por Bolsonaro. A coalizão de governo, sob forte pressão de interesses privatistas, de governos estaduais, de corporações e alianças com setores conservadores, atravessou a base progressista com a estratégia de conciliar interesses inconciliáveis e estrategicamente incongruentes com os princípios programáticos nucleares do próprio governo central.
Essa tibieza educacional deixou grande parcela da juventude vulnerável ao apelo de figuras autoritárias, que oferecem respostas simples para questões complexas. A política educacional que prioriza o empreendedorismo sem senso crítico contribui para a ascensão de líderes como Marçal, que se vendem como a solução para os males causados pela “interferência do Estado”.
As condenações dos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro são um passo importante para a preservação do Estado Democrático de Direito, mas não representam o fim da luta contra a radicalização de direita no Brasil. A construção de mártires, aliada à precariedade educacional, cria um cenário propício para o surgimento de uma extrema direita pós-bolsonarista que pode ser mais perigosa, sofisticada e autônoma. O desafio está em combater não apenas os efeitos visíveis dessa radicalização, mas suas causas profundas – o ressentimento social, a manipulação ideológica e a destituição de uma ação educativa que prepare o cidadão para os desafios do mundo contemporâneo, princípio constitucional da educação nacional.
Ronald Pinto
setembro/2024