Fernando Haddad, perfil do ministro da Fazenda- por OGlobo

A edição do jornal O Globo deste domingo publica um perfil de três páginas do ministro Fernando Haddad, assinado pela jornalista Miriam Leitão, em que são abordadas sua formação, sua relação por vezes conflituosa com o Partido dos Trabalhadores e também com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Num dos trechos, Haddad é questionado sobre uma previsão de seu pai, o comerciante já falecido Khalil Haddad, de que ele um dia seria presidente da República.

POR MÍRIAM LEITÃO

A quarta-feira, 12 de junho, foi o dia mais tenso de uma semana vista como a pior que Fernando Haddad enfrentou no cargo de ministro da Fazenda. Tudo estava contra ele. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolveu ao governo uma MP proposta pelo ministro, empresários criticavam a política econômica, alguns em tom estridente, o presidente Lula deu uma declaração que elevou ainda mais o dólar, e nas análises a palavra “isolado” era a mais repetida quando se falava de Haddad. Ele ficou em silêncio naquele dia. A um grupo de assessores, explicou, sem traço de nervosismo:

— Olha, não pode reagir a isso, porque se reagir sai pior a emenda que o soneto. Deixa a turma processar as informações e daqui a pouco o Lula vai falar, daqui a pouco eu vou falar, outros vão falar e pronto.

Na sexta-feira, 14, recebeu o apoio do presidente da Febraban, Isaac Sidney, numa reunião no seu gabinete em São Paulo, na sede do Banco do Brasil, na Paulista. Não demonstrava ter vivido uma semana pesada e explicava a interlocutores.

— Ministro da Fazenda é um cargo isolado por natureza, porque é a pessoa que contraria interesses.

Imagem de Scroll conteudo_1“EU SOU UM SUJEITO IMPROVÁVEL. NA POSIÇÃO EM QUE ESTOU? EU SOU MUITO IMPROVÁVEL.”

Fernando Haddad, sobre seu cargo no governo

A natureza do cargo é mesmo essa, mas o enredo de Haddad parece às vezes exagerar no papel. Nas últimas semanas, viveu sob marcação cerrada da direita e da esquerda, de empresários, do mercado financeiro e de seu próprio partido. Na semana passada houve o incêndio da relação entre o presidente Lula e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. E o dólar, que estava caindo após o Copom, inverteu a curva e atingiu sua cotação máxima na quinta. Haddad, de novo, ficou em silêncio público. Nas conversas privadas, não transpareceu alteração. Abordado pela imprensa, disse que falaria depois da ata do Copom. O que o ajuda a manter a serenidade em momentos de tensão é pensar na própria história.

— Eu sou um sujeito improvável. Na posição em que estou? Eu sou muito improvável. Sou filho de um lavrador libanês, que chegou ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás, sou neto de um homem que morreu com a batina do corpo.

O fio da meada para entender quem é Fernando Haddad precisa começar mesmo em suas raízes. Ele é filho de Khalil Haddad, um imigrante que chegou ao Brasil, aos 24 anos, pobre, semianalfabeto, vindo de uma pequena vila do Líbano, de onde saiu diante da perseguição que cercava os cristãos. É neto de um padre católico ortodoxo, Cury Habib, que veio para o país depois que todos os filhos já estavam aqui e está enterrado na cripta da Catedral Metropolitana Ortodoxa de São Paulo, na Rua Vergueiro. Após a morte recebeu o título de arcebispo. Cury Habib ficou viúvo jovem, virou padre e se firmou como uma forte liderança local. Quando Haddad foi ao Líbano, em 2004, para visitar o lugarejo de onde veio sua família, a lembrança do avô era ainda firme no coração da sua gente.

Fernando Haddad, durante conversa com o GLOBO

— Nessa casa eu moro, mas ela é do Cury Habib. Você pode ficar aqui quando vier — disse o novo dono da casa.

Tudo na vida de Haddad tem um toque de improbabilidade. Ele era prefeito de São Paulo, em 2016, e perdeu a reeleição no primeiro turno para João Doria, um estreante na política. Dois anos depois, em 2018, foi candidato à Presidência da República e teve 45% dos votos. Ele era um jovem estudante de Direito da USP, a tradicional escola do Largo de São Francisco e, ao mesmo tempo, comerciante na Vinte e Cinco de Março. Cruzava a pé essas duas realidades, próximas e distantes. Fez doutorado em filosofia, mas conseguiu formular algo tão prático quanto a Tabela Fipe, que até hoje orienta o comércio de veículos.

Por tudo isso, ele acredita no improvável. Em 2022, Haddad estava na sala da presidência do PT quando, ao fim de uma reunião, pediu licença para ficar sozinho com Lula e avisou:

— Eu preciso de apenas cinco minutos.

Imagem de Scroll conteudo_2

Lula ainda em pré-campanha. Tempos de conversa, negociação e tensão. Quando estavam só os dois, Haddad falou:

— Presidente, eu vim te trazer uma ideia.

— A política é uma coisa extraordinária — disse Lula rindo, como se adivinhasse.

— Se você disser não — disse Haddad — essa conversa nunca aconteceu. Se você não disser nada, eu vou trabalhar o assunto.

Lula aguardava a ideia com atenção.

— Alckmin de vice — falou.

Lula nada disse. Era o sinal de que não havia veto.

Nove anos antes, a relação com Alckmin teve um momento surpreendente. Era junho de 2013, Fernando Haddad era prefeito de São Paulo e estava no olho do furacão. Ele havia ocupado cargos públicos e chegado a ministro da Educação, mas aquele era o primeiro cargo ao qual chegara pelo voto. Na porta da prefeitura e nas ruas da cidade, uma multidão gritava noite e dia. Tentou até invadir a sede da administração. São Paulo, Rio e outras capitais viviam dias caóticos, mas tudo parecia ser pior na maior cidade do país. Com seis meses no cargo, sua popularidade despencou.

— Meu governo acabou — disse Haddad a vários amigos e assessores.

Eram as ruas de 2013, até hoje não entendidas no Brasil. Começaram como raiva contra todos os partidos e políticos e viraram munição da extrema direita. O gatilho da fúria havia sido um simples aumento de 6% nas tarifas de transporte, que foram represadas em 17% pelo prefeito anterior, Gilberto Kassab.

A presidente Dilma havia pedido a ele, ao prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao governador do Rio, Sérgio Cabral, e ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que não aumentassem as tarifas de transporte no início do ano. Adiassem para junho.

Visto agora parece ter sido um tiro pela culatra. Alckmin, apesar de ser do outro extremo da polarização política da época, o PSDB, acatou o pedido. Quando as tarifas subiram em junho e houve a explosão dos protestos, Dilma ligou pedindo para Haddad recuar do aumento.

— Mas não é a tarifa. Quando eu baixar, vai sobrar para a senhora.

“SE VOCÊ DISSER NÃO, ESSA CONVERSA NUNCA ACONTECEU. SE VOCÊ NÃO DISSER NADA, EU VOU TRABALHAR O ASSUNTO.”

Fernando Haddad a Lula sobre ter Alckmin como vice-presidente

Logo depois, Haddad recebeu um telefonema de Eduardo Paes, do Rio:

— Haddad eu vou anular o aumento. Anula também.

A situação estava insustentável, e os assessores insistiam para que ele recuasse. Ele então, para espanto do seu gabinete, comunicou que antes iria conversar com o governador:

— Não vou fazer isso sem o Alckmin. Ele aceitou o pedido da Dilma, não vou deixar ele com a brocha na mão.

Avisou a Alckmin que queria falar. Pegou o helicóptero, foi para o Bandeirantes e, juntos, os então adversários anunciaram o recuo, cedendo aos manifestantes. Os protestos continuaram, porque não era a tarifa. Era algo estranho que estava sendo gestado. O país teria notícias mais adiante. Curioso é que ele disse, desde muito antes daquele ano, e chegou a escrever, que havia o risco da volta de uma força política neonazista. “Está estranho isso aqui”, repetia a vários amigos.

Sua administração não acabou naquele início, mas ele não se reelegeu. Apesar disso, sua gestão deixou marcas em decisões, criticadas na época, mas que agora fazem parte da vida da cidade, como o fechamento da Paulista aos domingos, as ciclovias e, sobretudo, o corredor exclusivo de ônibus.

Conseguiu renegociar a dívida do município e conquistou o grau de investimento para a cidade. Ainda assim, saiu sob críticas gerais, principalmente do PT.

Veio então o que foi definido no seu grupo como “o tempo do deserto”. No ostracismo, decidiu viajar pelo Brasil. Conheceu diretórios do partido, deu palestras, falou com lideranças políticas. Viajava sozinho, com um assessor. Acabou aumentando sua conexão com a legenda. Ele nunca havia sido aceito no PT, no qual entrou quando era líder estudantil. Nos anos 80, Haddad foi presidente do famoso Centro Acadêmico XI de Agosto, sucedendo Eugênio Bucci, que havia lançado o movimento “The Pravda”. Buscava, uma esquerda longe da polarização da guerra fria. O “The” imitava o design do “The New York Times”. Achavam que passariam a ideia da junção de dois jornais polares.

— Mas evidentemente todo mundo só via o “Pravda” — disse um dos seus amigos.

Seus contemporâneos dizem que foi ali que nasceu o ser político, mas ele já começou com uma derrota. Não fez o sucessor. Em 1985, quando morreu Tancredo Neves, ele, presidente do Centro Acadêmico, escreveu um artigo com o título “emaranharam o Brasil”, numa referência ao Maranhão de Sarney, e propunha uma campanha para que Ulysses Guimarães assumisse o poder como presidente da Câmara e convocasse eleições. Tentava reacender a chama das Diretas Já, num país que já tendia para o pragmatismo. Ficou isolado. O grupo concorrente ganhou o diretório.

Isolado é a palavra que o acompanha, embora ele seja a pessoa que atravessa a rua para falar com possíveis aliados. Mas nem sempre foi assim. Em 2018, foi impedido de ampliar a aliança na campanha contra Jair Bolsonaro. E, em tempos anteriores, não quis. Em 2013, em entrevista a cientistas políticos, ele foi perguntado sobre falar com Fernando Henrique e disse que o ex-presidente era de outro projeto político. Fernando Henrique, diante da mesma pergunta, respondeu que, claro, falaria: “É o prefeito da minha cidade”. Ao mesmo tempo, como ministro da Educação, se aproximou do ex-ministro tucano Paulo Renato. A ponto de em 2006, Paulo Renato ter abordado o então ministro Guido Mantega no aeroporto e pedido para que o PT o mantivesse no cargo na troca de governo. Ele assumiu em 2005, quando Tarso Genro, de quem era assessor, saiu do governo. No novo mandato, havia articulação por outro titular no Ministério.

— Vocês não vão fazer a loucura de tirar o Haddad do Ministério, vão? — perguntou Paulo Renato a Mantega, de quem Haddad também havia sido assessor.

“NÃO VOU FAZER ISSO SEM O ALCKMIN. NÃO VOU DEIXAR ELE COM A BROCHA NA MÃO.”

Fernando Haddad, sobre recuo no aumento da tarifa de ônibus, em 2013

Quem acompanha sua trajetória diz que ele mudou ao longo dos anos, da formulação de políticas à prática da política. De pessoa solitária dentro do partido à entrada na tendência conhecida como campo majoritário. De intelectual vaidoso das suas credenciais acadêmicas a um político pragmático e capaz de diálogo.

Ele tem que se entender com Gleisi Hoffmann e com Arthur Lira. Com Lira, o entendimento tem sido surpreendentemente bom. Fora uma ou outra rusga, o diálogo é fácil e direto. Isso foi parte fundamental da aprovação da reforma tributária, a maior vitória de sua gestão. Haddad teve a sabedoria de pegar um projeto maduro, discutido há anos pelo economista Bernard Appy, não disputar protagonismo com o Congresso e estar sempre disponível para negociar nos momentos de impasse.

De Gleisi Hoffmann, sofreu a primeira derrota antes ainda de assumir o Ministério da Fazenda. O governo anterior deixou várias armadilhas. Uma delas foi a desoneração dos combustíveis, medida com vigência até 31 de dezembro. Em 1º de janeiro seria a posse de Lula. O que fazer? Haddad defendeu a volta do tributo. Estava certo do ponto de vista fiscal e ambiental. A ala política achava que seria um risco tomar posse aumentando preço. Haddad foi derrotado, e a presidente do partido anunciou a decisão de que o imposto não voltaria numa entrevista ao Estúdio i. O fato de ser anunciada na imprensa e pela presidente do partido já o enfraquecia.

Haddad fez então a virada que o tem marcado desde o começo da gestão. Perde o primeiro round e ganha o segundo. A decisão acabou sendo reonerar a gasolina após três meses de governo, e o diesel no ano seguinte. Mas as pressões do partido por influência na condução da política econômica, com ajuda do chefe da Casa Civil, Rui Costa, têm sido uma constante. Isso o levou a ter uma conversa direta com Lula sobre seu futuro no cargo logo na primeira semana de governo.

O terceiro ponto de tensão é Roberto Campos Neto. Um dia, na sala onde o Copom se reúne, os dois olharam juntos para o gigantesco painel de Candido Portinari, Descobrimento do Brasil. Quem assistiu a cena conta que eles tinham avaliações opostas sobre a obra, que encantava Haddad. Sobre outros temas houve um esforço sincero de entendimento de parte a parte. O bom clima foi rompido nos últimos dois meses. Mas não é o único atrito que Haddad enfrenta.

Na Esplanada dos Ministérios não é segredo que a relação com o ministro Rui Costa é tensa. A propósito, vários ministros se queixam do chefe da Casa Civil, que neste mandato concentra excessivos poderes. Quem participa de reuniões internas do governo narra que há um silêncio entre os dois. Falam-se apenas quando necessário. Essa fonte culpa mais o Rui Costa.

“VOCÊS NÃO VÃO FAZER A LOUCURA DE TIRAR O HADDAD DO MINISTÉRIO, VÃO?”

Paulo Renato, ex-ministro, a Guido Mantega, de quem Haddad foi assessor

— O Rui é também um pouco isolado em relação a nós. Nas reuniões que eu tenho participado ele não interage com os demais membros do coletivo, como o Haddad interage. Não há uma tensão no ar, mas o Haddad sempre fica mais à vontade falando conosco, os outros, do que nos diálogos com o Rui.

Um ponto óbvio de atrito é que o chefe da Casa Civil está sempre reclamando das restrições orçamentárias para as obras do PAC. Isso reedita um clássico de brigas internas de governos entre quem quer gastar e quem segura o caixa. Mas Rui Costa vai além e tenta influenciar nas decisões da política econômica, como aconteceu no fim do ano com a meta fiscal. Rui queria mudar e deu isso como decidido nas conversas com jornalistas. Quando parecia tudo perdido e até Lula dava indicação de ser a favor da mudança, Haddad conseguiu adiar a decisão. Mas a mudança da meta acabou vindo em 15 de abril e foi o início da piora das expectativas.

No caso da distribuição de dividendos da Petrobras, Haddad foi chamado para a reunião no meio da crise que se instalou, com as ações da empresa derretendo, após terem votado por não distribuir os dividendos extraordinários.

— Deixa eu entender o que está acontecendo aqui. Está faltando dinheiro na Petrobras? Não é isso que vejo nos dados.

A decisão acabou sendo distribuir metade dos dividendos, mas na briga pública do antigo presidente da estatal, o fritado Jean Paul Prates contra Rui Costa e o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, o ministro da Fazenda conseguiu emplacar uma pessoa de sua confiança no conselho da empresa: Rafael Dubeaux. Ele tem usado os limões para fazer limonadas.

“MINISTRO DA FAZENDA É UM CARGO ISOLADO POR NATUREZA PORQUE CONTRARIA INTERESSES”

Imagem de Scroll conteudo_3Fernando Haddad fez 44 visitas a Lula na prisão, em Curitiba. Foi em um desses encontros que o presidente disse:

— Sobramos eu e você, Haddad.

— Presidente, pensa bem antes de me convidar, porque eu não digo não para uma coisa dessas.

Era 2018, Lula era candidato, estava preso e tentava na Justiça o direito de concorrer. Enquanto isso procurava por de pé um plano B. O senador Jaques Wagner recusou. Ciro considerou uma ofensa. Sobrou para Haddad. Mas Lula só desistiu da candidatura quando faltava uma hora para o fim do prazo.

— Foi uma campanha cruel, em que ele, indicado na última hora, não tinha autonomia para tomar decisões — disse uma pessoa que acompanha a carreira de Haddad.

Tudo ficou mais dramático na última etapa. Jair Bolsonaro apostava em vitória no primeiro turno. Não conseguiu, mas chegou ao segundo turno, com uma enorme dianteira, 46% dos votos, contra 29% de Haddad. A proposta do petista ao partido foi anunciar os nomes de alguns futuros ministros indicando uma ampliação da aliança para o centro.

PRESIDENTE, PENSA BEM ANTES DE ME CONVIDAR, PORQUE EU NÃO DIGO NÃO PARA UMA COISA DESSAS.

Fernando Haddad, sobre sua candidatura em 2018, em diálogo com Lula, a quem visitava na prisão

Para a imprensa anunciou: “Nós vamos para o campo democrático com uma única arma: o argumento”. Em longa reunião no Diretório Nacional, seus argumentos não convenceram o partido. Melhorou na reta final, teve 45% dos votos, 46 milhões de eleitores votaram nele, mas perdeu a eleição.

Houve naquela campanha uma vitória pessoal. A um jornalista que perguntou a ele, anos antes, se seria presidente, Haddad respondeu que gostaria, sim, de concorrer à Presidência, mas ganhar a disputa não dependia dele. Achava que de certa forma atendia ao sonho, quase com certeza, que Khalil Haddad tinha em seu destino.

— Fernando vai ser presidente. Eu conheço meu filho. Ele vai ser presidente — costumava dizer seu pai.

O imigrante que falou mal português durante toda a vida, que teve altos e baixos na sua vida financeira, tinha confiança ilimitada no filho. Um episódio selou essa certeza. Fernando Haddad faria vestibular para a engenharia na Poli, mas o pai nesta época enfrentou uma crise e estava à beira de perder a casa, único bem da família, que ele, Khalil, havia construído. Poderia sair da confusão se tivesse um bom advogado. Fernando Haddad decidiu então fazer Direito com um plano, encontrar algum advogado probono para livrar o pai de uma ação injusta. Logo no primeiro ano abordou ninguém menos que o jurista Goffredo da Silva Telles Jr. Dias depois Goffredo chamou o aluno para a sua casa e pediu detalhes. Haddad relatou o caso, disse quem era o pai e concluiu:

— Isso vai terminar em tragédia.

Fernando Haddad, que foi prefeito de São Paulo por um mandato

Goffredo prometeu falar com um amigo. Conseguiu que a causa fosse assumida por Silvio Rodrigues, um dos melhores escritórios de advocacia de São Paulo. Ele ganhou, a dívida foi reduzida a uma fração do que era cobrado. Khalil Haddad se animou a voltar ao comércio.

Era 1981, o país estava enfrentando uma feroz recessão, as lojas estavam fechando na Vinte e Cinco de Março.

— Eu não tenho dinheiro, mas tenho crédito. Vou abrir a loja — disse Khalil para o filho.

— Eu vou com você — respondeu o filho.

E os dois viraram sócios na Mercantil Paulista.

Seus amigos de juventude, ou os que o conhecem bem, concordam num ponto: trabalhar na loja ajudou Fernando Haddad a ser quem é. Ele tinha que conhecer as pessoas, saber separar um bom cliente de um que pudesse dar um golpe. Eles não podiam errar de novo, até porque uma loja de atacado não faz pequenas vendas. Um erro podia ser fatal. Na loja, negociava. Na sobreloja, estudava em uma mesa em que de um lado ficavam os livros não lidos; de outro, os já lidos. Amigos contam que a pilha dos lidos crescia sempre. E rápido. A sociedade deu certo. Eles ganharam dinheiro e pagaram o que restava para ter de novo a propriedade. Essa é a casa na qual Haddad mora até hoje.

Quando terminou a graduação, foi para a Europa viajar como mochileiro. Voltou em junho e decidiu prestar o exame da Anpec, para o mestrado em economia. Procurou um professor que dava um curso preparatório, e ele o desaconselhou.

“FERNANDO VAI SER PRESIDENTE. EU CONHEÇO MEU FILHO. ELE VAI SER PRESIDENTE”

Khalil Haddad, pai do atual ministro, costumava repetir a frase sobre o futuro do filho

— Deixa eu te situar porque você não está entendendo. Economistas têm dificuldade. O exame é pesadíssimo.

Haddad estudou sozinho com a bibliografia do curso preparatório e mergulhado nas provas antigas. Passou. Era conhecido como “o advogado que passou na Anpec”. Formou junto com economistas do mestrado um grupo de estudos. Eram Alexandre Schwartsman, Paulo Pichetti, Amaury Gremaud e Naércio Menezes. Pichetti, hoje diretor do Banco Central, foi seu padrinho de casamento com Ana Estela. Do casamento nasceram Frederico e Carolina. A família inteira toca violão; os filhos bem melhor que os pais. E Carolina também toca piano. Depois do mestrado em economia, Haddad fez doutorado em filosofia.

Seu primeiro cargo público foi como chefe de gabinete de João Sayad, secretário de Finanças da prefeita Marta Suplicy. Em seguida foi para Brasília trabalhar no Ministério da Fazenda e, depois, no Ministério da Educação. Quando foi nomeado ministro da Educação, sua mãe, Norma, mostrou ter dúvidas se era um bom momento. O PT enfrentava a crise do mensalão. Já o pai, ao ser informado que o filho seria ministro da Educação, respondeu:

— É pouco.

Ficou como ministro até 2011, fez programas bem-sucedidos como o Prouni, que nasceu de uma ideia original de Ana Estela. Esse programa tem quase nenhum custo fiscal. Já a ampliação do Fies, deixou uma conta alta.

Hoje, como ministro da Fazenda, tem que ajustar contas. Foi nomeado no Egito, para onde foi acompanhando o então presidente eleito. Ao ser convidado, pediu que Lula invertesse a ordem:

Imagem de Scroll conteudo_4— EU DIGO O QUE EU FARIA NA FAZENDA E VOCÊ DIZ SE QUER.

Fernando Haddad, ao presidente Lula ao assumir a pasta da Fazenda

Em Sharm El Sheikh, entre o deserto e o Mar Vermelho, ele preparou em dois dias o programa que tem executado. Assumiu com descrédito do mercado e a oposição de grupos do partido. Ele havia acabado de perder a eleição estadual para Tarcísio de Freitas, um estreante nas urnas. Uma derrota e, de certa forma, uma vitória. Haddad conduziu o partido para a sua melhor votação em São Paulo. Teve 45% dos votos, 13 pontos percentuais a mais do que teve em 2018 no estado. Acha que conseguiu isso ampliando o palanque. “Tenho que ter um palanque que vá do Boulos ao Alckmin”. E fez isso, passando por Marina e Márcio França. Perdeu a eleição, mas seu desempenho foi decisivo para o resultado nacional. Aprendeu em 2018, que, para atravessar o deserto e cruzar o mar vermelho, em tempos de extrema direita, tem que costurar alianças.

Perguntado sobre a convicção do seu pai de que ele será presidente do Brasil, ele responde:

— A Presidência da República não é coisa de você querer. É preciso respeitar a sacralidade do topo da pirâmide. É coisa mágica. Não depende de você. Eu já tive a minha chance. Não consegui.

Seu último livro, “O terceiro excluído”, que está sendo lançado em inglês, é um diálogo complexo entre diversas disciplinas em busca do que ele define como horizonte utópico. A ideia de escrevê-lo surgiu depois de uma conversa com o linguista americano Noam Chomsky em sua casa, em 30 de setembro de 2018, na reta final da campanha presidencial. “Eu me encontrava, no intervalo de apenas uma semana, entre conversar com um dos grandes humanistas vivos e enfrentar nas urnas um psicopata. Sentia o choque de perspectivas irreconciliáveis”, escreveu na apresentação do livro.

Como ministro da Fazenda, ele enfrenta diariamente perspectivas difíceis de conciliar. Um Congresso anabolizado com as emendas, o PT que não atualizou a visão econômica, um mercado em tempos de aversão ao risco e o velho patrimonialismo. Ele fica no cargo? Uma pessoa do governo define assim:

— Lula não tem plano B para a Fazenda. Haddad é da confiança extrema e direta do Lula e tem seu convívio e carinho. Ao mesmo tempo conseguiu estabelecer pontes com o mercado.

Haddad carrega a certeza de que para chegar onde chegou fez um caminho improvável. Um funcionário de carreira do Banco Central conta que ele se emocionou quando assinou a primeira nota de real da sua gestão. Ele admite que naquele momento olhou para trás na história familiar.

— Meu pai, onde estiver, está orgulhoso de mim. Respondi aos meus antepassados. Está tudo bem.

OGLOBO

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