domingo, novembro 16, 2025
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Entrevista: Vinício Carrilho Martinez fala sobre capitalismo digital e tecnofascismo

Instituto Humanitas UNISINOS

Entrevistado: Vinício Carrilho Martinez (Prof. Titular da UFSCar)

Pauta: Capitalismo digital e Tecnofascismo: a captura do substrato criativo da Humanidade

  1. IHU – Para introduzirmos o assunto, gostaria que o senhor explicasse a diferença entre técnica e tecnologia e como as relações e transformações entre uma e outra nos levam ao tecnofacismo?

Basicamente, podemos entender que a técnica, assim como a arte e a política, são as marcas mais profundas e evidentes de nossa hominização – ou seja, o milenar tempo histórico em que fomos nos tornando humanos, das pequenas e grandes transformações que nos forjaram enquanto Homo sapiens sapiens. Antropologicamente, associa-se o Período do Neolítico como a fase em que essa junção (política, técnica e arte) tiveram uma espécie de “congruência em definitivo”, como uma síntese que se realiza, pois houve um grau maior de afirmação e de reconhecimento como “espécie diferente das demais”, um marco sensível no nosso entendimento acerca de nós mesmos (como espécie) e do mundo ao nosso redor. A tecnologia, como eu a vejo, recorta uma fase mais recente e se aproxima do que se convencionou denominar de formação do capitalismo. Neste caso, a técnica – convertida em tecnologia – perdeu gradativamente sua condição de hominização (até se acentuar em definitivo por meio da “acumulação primitiva de capitais”, no Colonialismo, na Expansão Ultramarina). E daí em diante se acentuou como base material de dominus: opressão para os colonizados, excluídos da produção e subalternizados. Frisando-se que dominus é uma das formas de dominação, outra, diversa, é racional-legal. Pois bem, esse movimento do capital é anterior à primeira revolução industrial e está mais próximo da própria criação do Estado Moderno – a enorme tecnologia política capaz de centralizar em torno de si (e para si), como se fossem seus, os mais variados interesses. Aumentou-se a escala de produção, mas refluiu a condição humana. O Estado Moderno, centralizado e unificado, teria a seu dispor (e disporia às classes e aos grupos dominantes) todo o arsenal tecnológico disponível: da atualização da bússola, do implemento das Caravelas (na fase de edificação do Estado-nação) até à profusão das ideias dominantes que se ajustavam à Colonização (escravismo). Em que pese o capitalismo sempre ser movido por contradições, a tecnologia não está direcionada ao desenvolvimento da condição humana, da Humanidade.

  1. IHU – A propósito, poderia descrever o que é o Tecnofacismo?

Se a grande tecnologia política inventada pelo capital para a dominação (na forma de dominus, de modo opressivo) foi o Estado Moderno, de lá para cá, ao longo dos séculos, a inventividade tecnológica da política – em busca de mais meios de opressão – manteve-se atenta e aguda. O Apartheid, na África do Sul é um exemplo recente da invenção de tecnologias políticas opressivas; no caso, pode-se dizer que seja uma tecnologia político-jurídica de opressão. Porém, o recorte mais evidente provém do Nazismo (e do Fascismo, de Mussolini). Na Itália, como ingrediente da tecnologia de dominação, flerte com as massas, estruturou-se a Carta de del Lavoro, um documento que colecionava direitos trabalhistas e foi inspiração para a nossa Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Na Alemanha nazista, muitos foram os aportes em tecnologia de destruição em massa, começando pelas armas de guerra sofisticadas – veja-se o emprego dos submarinos e das bombas V1 e V2 que pareciam chover em Londres –, no entanto, tem uma tecnologia que sempre me impressionou até mais do que as demais: o rádio de pilha. A colocação do rádio na equação nazista foi essencial, porque assim todas as residências, todos os lares alemães eram bombardeados e doutrinados com o discurso oficial do Partido Nazista, com Goebbels na direção. Uma tecnologia que se destacou na massificação, horizontalização, dos discursos e das diretrizes nazistas é por demais importante, fundamental, para se assegurar um rígido controle social. Algo de grande vulto havia sido interposto na Revolução Francesa (jacobinismo), com a criação do livro didático – tornando-se os ideais revolucionários mais acessíveis e replicáveis. Pois bem, essas premissas de formatação dos discursos e das práticas sociais teleguiadas são a essência do que se apelidou de Tecnofascismo. A grande diferença entre o passado e o presente se verifica na base material, nos tipos e recursos tecnológicos empregados – mas, não nas premissas. O Tecnofascismo, hoje, está entranhado nas redes sociais – que vejo como antissociais –, multiplicando-se, irradiando-se em discursos de ódio social sem controle algum. Pelo contrário, no estofo dessa tecnologia – redes antissociais – estão agindo algoritmos que prospectam e difundem os discursos racistas, misóginos, fascistas. A própria base material está alinhada à multiplicação do Fascismo. O que nos diferencia um pouco do uso anterior das tecnologias políticas é a profusão, a fractalidade: o ódio se multiplica como flocos de neve. Então, há uma recuperação dos principais pontos do Fascismo tradicional, da era Mussolini, além de sua propulsão incontida (estimulada) a partir das tecnologias digitais. Com a Inteligência Artificial não será diferente, se pensarmos no quanto a IA é racista e misógina na “entrega” das pesquisas.

 

  1. IHU – De que forma as Big Techs pautam a política?

Junto ao capital especulativo, seja de renda fixa seja de renda variável – também conhecido por rentismo – as Big Techs, como eixo do Capitalismo de dados (captura e monetização dos nossos dados sensíveis e postagens, reações digitais, além da incursão de propagandas), são o que entendo uma condição importante da estrutura hegemônica do capital atualmente. Por capital hegemônico subentende-se o capital que efetivamente predomina, controla e dirige o poder de decisão. Não é à toa que a fractalização acompanhou, deu vasão, à globalização (e que não é outro Colonialismo: na geopolítica e na base material são bem diferentes): o capital acumulado no sistema financeiro precisava chegar a todos os lugares, a todos os continentes e lares, e está quase lá, se pensarmos que apenas a Meta (Facebook, Instagram, Whatsapp) está presente ao alcance de cinco bilhões (cinco bilhões!) de pessoas. Assim, se você chega a cinco bilhões de pessoas, por óbvio, que é capaz de modificar a qualidade da política. A popularização dessa tecnologia foi a grande mudança, enquanto tecnologia de reprodução e de acondicionamento. Porém, há outra característica que deve ser apontada e que é a “apropriação”. A própria Internet como a conhecemos hoje, na década de 1990 não só tinha outra configuração tecnológica como seus horizontes ou, ao menos, possibilidades eram distantes dos atuais. No contexto daquela época recente, o fenômeno das Multidões se pronunciou e se apresentou como sinônimo de “pontos de fuga” (no dizer de Deleuze) dos meios controlativos da mídia oficial, tradicional. Desde o México de Chiapas – com a insurgência dos povos indígenas – até Seatle e o antigo G7, os insatisfeitos, rebeldes, revolucionários, libertários – especialmente a juventude daquele momento (ou seja, a minha geração) – encontraram na Internet uma forma descentralizada (tecnologia do “todos-todos”, oposta ao “um-todos” dos jornais, das Tvs) e apta ao encontro, à reunião ampliada, dispersa, fractalizada, de mentes e corações avessos ao dominus daquela forma prevalecente de capital (sistema financeiro globalizado). As redes sociais nem existiam, ou melhor, tinham ali seu embrião: o fractal. Porém, astutamente, e com a Meta de hoje sempre empenhada em favorecer os grupos de poder e de mando, o que era uma “ideia de rede” logo se arrumou como redes sociais. A diferença, neste ponto, está na perda “gradual e segura” da autonomia, da liberdade, da premissa da emancipação: os algoritmos sempre favoreceram – como base material da tecnologia de domínio financeiro – as relações lucrativas e impulsivas do poder político alinhado ao capital financeiro. Em suma, houve a partir dos 1990, gradualmente, uma mudança de rumo no fluxo da liberdade e da participação social. As redes sociais trouxeram novas bases de controle social, mas, antes disso, promoveram uma “apropriação” dos sentidos e dos significados (libertários, difusos, democráticos) que orbitavam as práticas políticas das Multidões envoltas nos arranjos que a Internet permitia. Na prática, portanto, ocorreu uma apropriação da experiência política e sua deturpação – ou, em outras palavras, ocorreu uma desapropriação da ideia de rede e se interpôs sua conversão (pelo capital financeirizado) com o incremento das atuais redes antissociais.

  1. IHU – Como a IA captura a pauta política e como essa mediação tecnológica destitui a polis?

Em primeiro lugar, porque estamos cedendo espaços e condições de criação genuinamente humanos à Inteligência Artificial (IA), na música, na arte em geral, na redação de mensagens, na produção inclusive de teses acadêmicas. Entretanto, também cedemos na política, transferindo para decisões tecnológicas as pautas políticas que nos são as mais caras. As políticas públicas já são desenhadas e definidas em muitos países pela IA – sem consulta popular. Ora, se a consulta popular é o que temos mais perto de nós desse fenômeno político que é a Polis (o próprio espaço público), então, a sua supressão – em nome de alguma aposta ideológica (mentirosa) em favor de “decisões técnicas mais acertadas” (a tecnoburocracia de antigamente se fazendo mais atuante) –, obviamente, não pode confluir com o aprimoramento e aprofundamento da qualidade almejada para a condição humana. É preciso ter em conta, de forma muito clara e até repetitiva, que somos o resultado da política, somos “animais políticos” – e seríamos muito mais “políticos”, politizados, se o espaço público fosse delineado pelos maiores e melhores interesses humanos. Ainda lembremos que a IA não tem domínio público, é uma tecnologia com “razão empresarial”, criada e posta para rodar em tornos dos interesses econômicos prevalecentes. Nenhuma ação humana é isenta, neutra – porque não há isenção em nada que se transforma – e a política é a arte da transformação, tanto é assim que a política nos transformou de seres sociais, aptos à sociabilidade, em animais políticos, produtores de poder e das condições de dominação e de decisão (racional, legítima) ou de dominus (opressão). Se tiramos isso do humano-genérico e das populações e comunidades mais específicas, substituindo-as por decisões artificiais, é claro que o resultado não poderia ser pior para nós. Essa é uma tendência que tende a se reproduzir e ampliar em todos os quadrantes, especialmente na política.

  1. IHU – A negação da política é uma ideia que tem sido utilizada pela extrema-direita para conquistar corações e mentes da população. O que está por trás desse projeto político e como ele se materializa na sociedade?

A negação da política, como antecipado na resposta anterior, agora tem incrementos tecnológicos de uma dimensão nunca mensurados em nossa história: do rádio de pilha nazista às redes antissociais há uma transformação qualitativa monstruosa: é como se o discurso de Goebbels pudesse alcanças cinco bilhões de pessoas. E os discursos de Goebbels e de Mussolini têm em comum a deformação, desconstrução, destruição da arena política. O Fascismo nunca politizou ninguém; ao contrário, seu esforço sempre foi o da despolitização. Entendo que a política é a expressão e a Polis, o local, o medium. É assim que a extrema-direita, supremacista, racista, fascista, se “apropria” da política e, ao fazê-lo, acaba por descredenciar por completo o campo da política – sempre lembrar que a política é expressão do espaço público. O espaço público é onde se manifesta o Princípio do Contraditório (o dizer não), das contradições afloradas e contraditas por teses que se chocam. É do espaço público que pode/deve surgir a síntese, a sistematização transformadora das teses postas para avaliação e decisão. Essa capacidade decisional, se estamos efetivamente no espaço público, deve ser coletiva e os envolvidos precisam ter consciência aprofundada, alongada, acerca das implicações e das consequências não só de suas escolhas, mas do que, substancialmente, se produzirá no futuro, após as deliberações e a tomada de decisão (um pouco no sentido de Habermas). Por definição, a extrema-direita (racista, fascista) não garante o espaço público; além de buscar sua privatização (a partir dos grandes conglomerados), por condição óbvia, o Princípio do Contraditório é o primeiro a ser negado, atacado, demovido. Vemos como a “demonização da política” é uma pauta acesa nos períodos eleitorais (outsiders). Assim se produz a destruição da política, da Polis, do espaço público, enfileirando-se todas as teses políticas em torno de um “pensamento único”: o pensamento de corte fascista. Não pode haver divergência, discordância, propositura do seu contrário (o normal e desejado no espaço público) ao pensamento fascista, pois, a antítese do Fascismo é a democracia e, com esta, o Fascismo (a extrema-direita) seria destruído. Definitivamente, a extrema-direita não politiza as comunidades, as populações, as periferias.

  1. IHU – Qual parece ser o objetivo final da tecnologia digital?

O objetivo final é o dominus por completo do substrato humano. Chegar o mais próximo possível do controle comunicacional de oito bilhões de pessoas: acessar, ver, ler, ouvir, consumir e sugerir o que oito bilhões de pessoas devem acessar, ver, ler, ouvir, consumir e sugerir (um 1984 amplificado, fractalizado ao expoente máximo). Entendo por substrato humano o que, hoje (em 2025), produzimos e postamos na Internet, seja ou não a partir de redes sociais. Esse substrato ainda é produto humano, em sua maioria ou essência. Em breve, contudo, mudará de mãos – se continuarmos embarcados docilmente na tecnologia da IA. É, ainda hoje, esse substrato (nossas criações e manifestações culturais, conceituais – como esta entrevista – pessoais e coletivas) o resultado direto de nossas intenções – sejam elas fascistas ou democráticas. O problema maior, me parece, está no por-vir, porque pode vir a ser um mundo em total distopia. Se nossa Utopia repousa na ideia de um mundo mais equilibrado, qualificado, moralmente, ecologicamente, socialmente, a distopia está claramente depositada na tecnologia de dominus que “coloniza” 5 bilhões de pessoas. Fazenda Modelo, romance distópico produzido por Chico Buarque seria oportuno ser relido atualmente.

  1. IHU – Como a inteligência artificial captura o substrato criativo da humanidade?

A IA apresenta como suas as respostas que nos fornece. O que ocorre, ao contrário disso, é que as informações, as análises, os postulados, as teses, foram postas na Internet por humanos. Nós ainda produzimos a informação, os dados, o conhecimento que vão constituir o que chamei de substrato humano, a nossa produção e publicação digital (o trabalho vivo, intelectualizado, mais criativo). Porém, os algoritmos capturam impunemente o que fizemos e nos ofertam essas informações (rearranjadas) como se fosse um brilhantismo tecnológico: daí o novo “fetichismo da mercadoria” (diria o velho Marx) ou fantasmagoria (em Kafka). Na história da Humanidade não há caso mais gravoso de apropriação indébita, de expropriação, do que essa promovida pela IA. Essa tecnologia ainda não é capaz de produzir por si (em que pese máquinas já planejarem máquinas, isso ocorre a partir das nossas premissas, das premissas dos engenheiros ou projetistas). O dilema maior surgirá quando chegarmos à fase da IA integral, ou sob o dominus de uma IA só – talvez até capaz da singularidade. Neste momento, a IA ainda prescinde do substrato humano criativo. Por enquanto, a IA é um tipo mais “refinado” (com suporte tecnológico mais eficiente e multiplicado) do famoso método do “copia e cola”. A IA nos copia, cola o que fizemos e nos põe em cópia para recebermos respostas com base no que lhe enviamos previamente. É assim que a IA passa de ano e nós repetimos os mesmos erros. A IA ainda não sabe o que significa o 15 ou o 20 de novembro, no Brasil. Talvez um dia saiba, se aproprie do seu significado e o inverta quando perguntarmos.

  1. IHU – Como o capital digital institui um desejo de pensamento único? Até que ponto isso se concretiza?

Esse pensamento único está sendo apontado, construído, pelas bases materiais do que chamo de Capitalismo digital. As subjetividades estão em constante processo de captura pelos Grupos de Interesse Hegemônicos; profundamente, profusamente, capturadas em todos os quadrantes do planeta, em todas as classes, segmentos, grupos, estratos e camadas sociais. Ninguém está fora do alcance, ainda que não estejam conectados, porque os impactos e os resultados são sentidos por todos. A natureza é a mais impactada, com a produção em escala e com níveis acelerados de obsolescência das mercadorias: consumimos mais, devastamos mais. A questão é que não se tem essa consciência, da obsolescência acentuada. Em parte, por ação continuada desse fluxo consumerista/degradante, também se acentua um ritmo maior de “naturalização das formas de exceção”. A Uberização (pejotização) é um exemplo dessa atualidade e, controversamente, é o caminho oposto daquele anunciado pela Carta del Lavoro de Mussolini: o descredenciamento do Mundo do Trabalho é avassalador. Muitos dos subalternizados pela Uberização já se encontram ensimesmados na plena aceitação (e troca) dos direitos e das garantias trabalhistas por um ganho imediato, diário, e sem incidência de impostos: troca-se, definitivamente, a mínima segurança pessoal (seguro saúde, por exemplo) pelo ganho instantâneo: é nisto que se colocou, reduzindo-se por completo, a subjetividade das classes trabalhadoras e dos subalternizados. Outros são literalmente esgotados pelo ritmo e pelas condições laborais. E, numa fase aguda, adoecem com gravidades muitas vezes irreversíveis. Na extremadura dessa equação, há os milhões (bilhões, dependendo de como se analise) de pessoas simplesmente excluídas, banidas do Mundo do Trabalho, assujeitadas em condições as mais degradantes. Em vários desses casos, a própria identidade da pessoa é decomposta – no que se chama de “crise ontológica”, a pessoa duvida de sua própria existência, não se tem mais como referência insular. Muitos restam prostrados como se fossem ovoides, sem distinção de si, sem identificação do seu ser; ao passo que os outros bilhões sobreviventes vivem dentro de bolhas de referenciação, as bolhas geradas a partir dos algoritmos que pavimentam as redes antissociais. A “nova” fase do pensamento único – servir para enriquecer, obedecer para oprimir – está sendo edificado pela identificação com a obsolescência e pelo medo da morte violenta (violência que alimenta mais violência), pelo pânico e terror – não foi diferente sob o nazifascismo. O Franquismo na Espanha é um marco tardio, prolongado da violência fascista: “viva la muerte”, dizia-se alegremente.

 

  1. IHU – Como a obsolescência humana possibilita a extração da mais valia absoluta?

A escala 6×1, a uberização do Mundo do Trabalho (com jornadas de 12 horas diárias, nos remete ao fluxo da 1ª Revolução Industrial), a exploração do trabalho sob condições análogas à escravidão, são exemplares. No entanto, a demonstração mais aguda está na escala implantada em muitos países industrializados ou em vias de desenvolvimento, e que é conhecida como 9-9-6. Trata-se de uma jornada de trabalho imposta das 9 horas da manhã até às 21 horas, durante seis dias da semana – o que totaliza 72 horas de extração da mais valia (enquanto trabalho vivo) por semana. Esse ritmo é brutal, a despersonalização do indivíduo é total, os níveis de estranhamento são absolutos. É neste sentido que vejo a extração da mais valia absoluta nesses tempos tão relativizados. Os ganhos, os rendimentos, a base salarial, efetivamente, não contempla essa carga exploratória e de expropriação de tudo o que a classe trabalhadora possa ser capaz de produzir. Esse ritmo, não diferencia muito se é feito no modo remoto ou presencial, não edifica pessoas mais humanas; pelo contrário, as descredencia de participarem, de fazerem parte do espaço público. Como é que se pensa ou faz política com 72 horas submersas no modo de produção? Não há condição cognitiva, reflexiva, analítica e crítica, que sobreviva a tais níveis de exploração e de “obsolescência humana”. Ninguém resiste, em sua humanidade, a essa brutalização. É óbvio, portanto, que a crise ontológica vem disfarçada (até onde é possível) por “doenças e enfermidades mentais”. Quando pensamos no trabalho vivo (iminentemente intelectual, projetivo) a deformidade não é diferente, notadamente, se pensarmos nas enfermidades mentais: “colapsos”. São milhares de professoras e de professores já em processo de adoecimento no Brasil todo. Nas universidades públicas, talvez o ritmo seja diferenciado; todavia, o “vício pelo trabalho”, além de esconder o ritmo de trabalho (incluindo-se férias e finais de semana), ainda acentua um discurso laborativo de “mais quantidade, mais capacidade”. A universidade pública, ainda mais mergulhada na lógica neoliberal (neocolonial) de exploração da mais valia absoluta (e do trabalho vivo), quer esconder esse capacitismo pós-moderno: quando o próprio trabalho intelectual é unicamente medido pelas métricas da quantidade, sem relevo ou incidência de criatividade efetiva. Pois bem, sem criatividade não se faz crítica (presos na mesmice) e, sem isso, não há inovação ou Ciência. Costumo dizer que o pior da universidade pública é a lógica produtivista que se instalou, mas de péssima qualidade; afinal, “as pessoas competem entre si para ver quem faz mais igual, e depois se engalfinham em vaidade para saber quem fez mais igual”. É uma atualização do ditado popular mais famigerado que possa existir, ao negar de pronto a emancipação, quando diz, solenemente: “vamos deixar como está, para ver como fica”. Essa ideia faria Paulo Freire ter colapsos. Assim, o trabalho vivo, engenhoso, prospectivo, criativo, intuitivo, está obsoleto – no seu lugar está posta a lógica reprodutiva da obsolescência humana.

  1. IHU – Sob qual aspecto o trabalho infantil digital e a servidão voluntária às Big Techs podem ser vistos como “escravismo digital”?

Todos que participam de alguma perna da engenhoca da comunicação e da platamorfização digital o faz na condição de “servo voluntário” (na expressão de Bauman), posto que até mesmo nossas intenções passam pela captura da subjetividade e de sua apropriação indébita, ilegal e imoral. Veja-se o exemplo simples do Gmail, praticamente obrigatório (irrefutável) nas universidades, centros e institutos de pesquisa – toda a pesquisa nacional, a Ciência, o conhecimento, tudo passa pelo Gmail. E o que é o Gmail? É a principal porta de entrada no substrato acadêmico pela empresa que o disponibiliza (Google). Isso já é amplamente sabido. O que ainda não mensuramos adequadamente se refere à exploração do trabalho infantil nas redes antissociais – e que é altamente lucrativo para pais, mães, responsáveis. Induzidas por mais consumo, glamour (com os coleguinhas), as crianças são manipuladas por seus gestores: não fazem a mínima ideia da lucratividade envolvida em “suas brincadeiras” digitais. Não podemos esquecer, nunca, que a exploração do trabalho é abjeto, uma das piores formas de opressão, e seja no aspecto digital seja no “mundo real” (físico) – e a exploração do trabalho infantil nem encontra adjetivos à altura de sua malícia. Para além disso ainda há o fenômeno da adultização, que é a transformação de crianças em objetos sexuais. A somatória dessas atribuições digitais poderiam ser o miolo desse escravismo digital, uma vez que estamos todos submetidos à essa era de exploração e de pensamento único. Não há uma criança, jovem ou adulto que não passe ou não receba os efeitos do mundo digital: quando utilizamos o aplicativo de bancos ou de qualquer empresa estamos trabalhando para ela. A suposta “comodidade”, na acessibilidade digital, é uma máscara que esconde o desmantelamento da rede de trabalhadores e o aumento do nosso trabalho, pessoal, em busca de serviços ou informações pelas quais estamos pagando. Então, trabalhamos de graça, e felizes, certos de nossa comodidade. Esse poderia ser o resumo da mentalidade submetida, subsumida ao escravismo digital.

  1. IHU – Quais são as consequências da captura da polis pela IA? Após a despolitização, qual será o futuro da Humanidade?

Bem, o futuro da Humanidade será o que nós decidirmos. O problema é “o agora”, o “como” e sobre “o que” estamos decidindo para nós mesmos. Bilionários constroem bunkers em toda parte do mundo, mas para que? Lá dentro de suas cavernas bilionárias teriam alguns anos, até décadas de sobrevida – frente às possíveis catástrofes que eles produziram –, mas, e depois, quando e se abrissem a jaula pós-moderna que fizeram para se guardar de sua distopia, o que devem encontrar do lado de fora? Imaginemos que alguns humanos tenham sobrevivido, que alguns animais tenham restado, qual será o nível de humanidade que verão aqui fora, o que restará do conhecimento, da tecnologia e da Ciência que ajudaram a destruir? Com certeza, o barbarismo não será menor do que esse Fascismo que estão plantando todos os dias, todas as horas. Por isso chamei a atenção para o presente, para o aqui e agora. O que podemos fazer a partir de agora, individualmente, coletivamente, em face dos devaneios e das distopias que nos são apresentadas todos os dias? O que temos feito, com quem, quando? É obvio que as articulações entre nossos posicionamentos e ações individuais devem/precisam estar alinhadas ao que pensamos e almejamos em termos coletivos, propriamente humanos. Portanto, a expansão da reflexão e da ação ambiental, de sua preservação e recuperação, penso, deve ser imediata, pondo-se como a principal cautela a nos mover daqui por diante. O que mais podemos fazer? Podemos nos alinhar com petições políticas que descredenciem as pautas fascistas, de imediato, porém, também as pautas niilistas, egoístas, hedonistas, desprovidas de conteúdo social (Interação), devem ser denunciadas, analisadas e combatidas. Digo combatidas porque estamos mergulhados numa luta política, em meio à Luta de classes racista, e, em cheio, no mundo construído por distopias que desafiam os piores pesadelos dos mais notáveis escritores de distopia…

  1. IHU – Diante de uma sociedade já bastante estruturada sob a égide do capitalismo digital, quais saídas vislumbra para um futuro para além do imperativo tecnocientífico e tecnofascista?

No cômputo geral, há um esgotamento do “modelo humano”: esgotamos o espaço público, o Mundo do Trabalho, as condições mínimas da dignidade humana, esgotamos os recursos naturais, esgotamos nossa indignação e esgotamos a paciência da Natureza conosco. Elevamos a “dominação da natureza” às últimas consequências, afirmamos as teses de Bacon elevadas à décima potência. Nunca o “saber é poder” foi tão claro e evidente, todavia, trata-se de um “saber manipular” os Homens e massacrar com mais veemência o nosso isolado Planeta. Nunca a Humanidade se colocou um desafio como esse (parafraseando Marx), porque é um desafio para agora, com todas as forças humanas, políticas, morais, tecnológicas que temos à nossa disposição. O problema é que não temos essa disposição de frear o ritmo exploratório, de limitar e controlar o nível do próprio desenvolvimento tecnológico, a começar pela IA (descontrolada) enquanto a Humanidade segue enlouquecida para consumir. Se um dia chegássemos perto dessa consciência, competência ampliada – o que minha Utopia não permite visualizar – alguns dos sentidos mais inaugurais da articulação humana seriam resgatados: a política voltaria a ser humana e “hominizada”, a tecnologia seria vista como o antigo manejo técnico, a arte seria dirigida pela condição humana. O que fazer? De modo bem específico, penso que os aportes qualificados na educação e na cultura, de forma a descolonizar o Estado Laico, a afirmar a formação política dos estudantes, em termos de serem ávidos consumidores de uma educação de qualidade, inclusiva, democrática, emancipadora, ainda é o remédio que precisamos enquanto Povo brasileiro – destacando-se, (re)construindo-se nossa diversidade social, cultural, política, nosso sincretismo.

  1. IHU – Deseja acrescentar algo?

Quero acrescentar mais quatro questões, propostas por estudantes de vários cursos de graduação da UFSCar e que se ligam perfeitamente ao que viemos analisando.

  • IHU – Como a obsolescência humana possibilita a extração da mais valia?

Com a obsolescência humana, o trabalhador torna-se facilmente substituível e desqualificado, o que o deixa mais vulnerável ao aumento de sua exploração, já que ele, o trabalhador, adquire o pensamento de que não possui poder suficiente para exigir melhores condições e corre o risco de ser substituído a qualquer momento. É possível visualizar que essa construção é enfraquecida desde sua base diante do atual projeto neoliberal na educação pública brasileira. Onde a carga horária de disciplinas da área de ciências humanas foram reduzidas, enfraquecendo a formação do pensamento crítico, ao passo que matérias inconsistentes (por exemplo educação financeira) e cursos técnicos são implementados e priorizados. Enquanto o ensino privado continua com o itinerário antigo e com foco pré-vestibular. Um exemplo desse resultado é o capitalismo digital presente na plataforma Uber, o trabalhador é visto apenas como um número no algoritmo (intencionalmente), podendo ser desligado a qualquer momento no impasse que outra pessoa aceite a trabalhar por menos. A obsolescência humana cria essa instabilidade e insegurança no trabalhador, reforçando a estrutura contemporânea de extração da mais valia absoluta.

Izabela Victória Pereira

  • IHU – como a IA interfere no processo criativo?

A criação de novas ferramentas, seja motivada pelo lucro, seja motiva pela necessidade, ou por alguma contingência, faz parte da natureza humana. Estar no mundo é também mudar o mundo. Esse é o modo como os homens, em geral, opera. De forma nenhuma a natureza humana é reduzida a esse ordinário princípio objetivo, a dialética tem maior fundamento para explicar tal natureza. No entanto, há padrões que permanecem. A técnica é um exemplo. Com o capitalismo digital cada vez mais disseminado, o mundo está sobre o poder das novas tecnologias de comunicação e operação. O atual momento exprime uma nova revolução tecnológica, marcada pelo advento das IA (inteligência artificial) e IAG (inteligência artificial generativa). A partir de um prompt é possível pesquisar criar ou copiar algo. O problema está mais sobre a cópia do que sobre a pesquisa e a criação, pois a utilização dessas ferramentas para pesquisar é legitima, para criação idem, mas, quando utilizada para copiar ideias sem que haja permissão do criador, é abominável para sociedade e para a arte. A cópia de estilos artísticos foi notória quando houve a reação do estúdio Ghibli. A onda de imagens nas plataformas e rede sociais com a estética desse estúdio gerou revolta no estúdio, pois não houve permissão por parte dos criadores.

João P. Magalhães

  • IHU – Discuta como diferentes formas de obsolescência humana são produzidas na sociedade contemporânea, articulando tecnologia, trabalho e corpo.

A obsolescência humana na sociedade atual pode se manifestar por meio de diferentes processos, seja nos meios tecnológicos, de trabalho ou ainda nos corpos e em suas expressões sociais, tornando tais estruturas cada vez mais descartáveis e distantes da humanização. Nesse aspecto, a uberização, bem como o sistema chinês 9-9-6 (sujeito de desempenho – Byung-Chul Han), tem reduzido os trabalhadores a condições somente de sobrevivência. É válido salientar ainda o tópico ‘sobrevivência’ do sujeito, isto é, a vida não se traduz em experiências ou desenvolvimento, mas em suportar jornadas exaustivas que acabam por reforçar o princípio de que, uma vez esgotada a capacidade produtiva, de vender sua mão de obra, o indivíduo pode ser facilmente substituído. Outro ponto de grande relevância refere-se na forma como as Big Techs, associado ao avanço da inteligência artificial (IA), tem tomado para si o substrato criativo humano, como os recentes debates envolvendo dubladores, que se movimentaram amplamente para manter suas funções na dublagem de filmes e séries, visto que as IAs não teriam as capacidade humanas necessárias para transmitir anseios, emoções e todos aspectos necessários em produções artísticas. Isso mostra como as IAs tendem padronizar formas de criação em meras performances, isso tudo com uma promessa de eficiência e maior escala de produção. Por fim, mas sendo, particularmente, uma das principais formas de demonstrar a obsolescência dos corpos, se expressa também como o corpo feminino sempre apresentou esse marco de tornar-se obsolescente em dado momento, especificamente durante e após a menopausa. Esse processo é frequentemente compreendido (ou melhor, apresenta uma grande falta de compreensão) como um “ponto final” na vida de mulheres, isso porque, na visão biológica, que associa a sistematização feminina como a capacidade de gerar proles, de se reproduzir, quando isso não ocorre mais, a mulher torna-se um “objeto fora do prazo de validade”. Essa visão, para além da biologia, pode ser visualizada também de diversas formas, dentre elas as várias obras intituladas por Vênus, como ‘O Nascimento de Vênus’ (Sandro Botticelli), mais anteriormente, no período pré-histórico, a escultura ‘Vênus’ ou, por fim, a ‘Vênus de Milo’. Todas essas obras se apresentam nuas, com seios fartos e quadris largos, demonstrando como esse aspecto reprodutivo é essencial para afirmar a feminilidade em sua capacidade de “parir” e amamentar suas crias. Por sua vez, a falta de estudos, investimentos e políticas que ampliem a qualidade de vida após esse período evidencia como as mulheres são vistas como obsoletas não apenas no mercado de trabalho, mas também em esferas afetivas, sociais e relacionais. Ressalto aqui, portanto, que o corpo feminino, para além de tantas batalhas e sofrimentos, enfrenta também uma dupla obsolescência: produtiva e existencial. Esses eixos são articulados de modo a manter a lógica vigente, que busca a exploração acima do indivíduo ali presente, sendo a obsolescência humana, portanto, não é apenas tecnológica ou econômica, mas profundamente social, cultural e política.

Ester Dias S. Batista

  • IHU – Quais seriam as novas necessidades dos seres humanos que proporcionou essa mudança tecnológica?

Para explicar a diferença entre técnica e tecnologia de forma completa é interessante voltarmos aos gregos. Eles chamavam a técnica de techné. O termo grego é mais amplo, porém vamos nos ater apenas na questão da técnica. De modo geral a técnica é um conhecimento utilizado para a produção de objetos ou construções. Esse conhecimento, para os gregos deve ter uma forma de ser atestado (ou comprovado), seja por meio de um certificado nos dias atuais ou de indicações daquele produtor com relação à sua produção, como por exemplo o carpinteiro ou o arquiteto. Esse conhecimento requer, consequentemente uma habilidade para realizá-lo e também pode ser ensinado. A tecnologia está relacionada a técnica, ainda que sejam coisas diferentes. Enquanto a técnica produz algo, a tecnologia pode ser produzida por meio da técnica. Normalmente com o intuito de melhorar processos, ferramentas e a própria vida do ser humano. A forma como concebemos a tecnologia difere bastante do que seria para os gregos, mas o intuito continua sendo o mesmo, apenas com a evolução dos seres humanos e suas necessidades.

Lucas Gama

 

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