Vinício Carrilho Martinez
Esse pequeno texto é uma tentativa de diálogo com o liberalismo de baixa reflexão ou com o inconsequente neoliberalismo em que as Luzes são ausentes. Não nos referimos aqui ao sentido economicista.
Inicialmente, para esse neoliberalismo sem Luzes, podemos dizer que a “Liberdade absoluta” é igual à liberdade total, como se diz no popular é “fazer qualquer tudo, fazer coisa e não dar em nada”.
A vida real, prática, no entanto, nos prova que não é assim: as ações têm resultados e consequências. Os resultados, inclusive, podem sair ao contrário do que gostaríamos e, é bastante óbvio, as consequências podem ser ainda mais desastrosas.
Afinal, não há, nem haverá, nenhum lugar na Terra (e na nossa história) em que não se cobrem responsabilidades, quer sejam morais, quer sejam sociais, políticas e jurídicas. Sempre haverá uma condição, uma força heterodoxa (impositiva) atuando sobre nós – quer tenhamos atuado mais ativamente no estabelecimento dessas “regras” ou não, ou seja, quer sejam regras e condições mais legítimas (socialmente) quer sejam o resultado impositivo de algum poder monocrático estabelecido (exterior e até autocrático).
O direito penal, especialmente, tem uma lógica reversa: a liberdade é absoluta, porém, o próprio indivíduo pode não agir, a fim de que sua liberdade não seja ainda mais reprimida.
- Todo mundo é livre pra matar e roubar.
- A lei não proíbe diretamente (só na lógica reversa, quando a pessoa não faz por medo das implicações de seu ato).
O fato que resulta dessa “liberdade de matar e roubar” é a questão.
Porque a lei pune tais atos com a pena de restrição da liberdade.
A lei diz “pena de tanto a tanto”, e se o indivíduo não quer ser preso, então, não comete o crime. Essa é a lógica reversa: é como se a lei dissesse “não faça, porque se fizer vou te punir”.
Assim, o medo de receber a pena de restrição da liberdade inibe a “liberdade de matar e roubar”, por exemplo.
A lei também não proíbe a tentativa de golpe de Estado ou abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entretanto, resguarda penitências e uma severa punição: a prisão.
Há ainda pessoas que se julgam no direito de “exercerem livremente” a defesa do cometimento de crimes, incitando, defendendo, divulgando atos criminosos. Esses indivíduos se veem “livres” para agir assim porque supõem que a liberdade seja mesmo absoluta. O crime que cometem é o de apologia ao crime, com previsão de penalidades, é óbvio.
Nesses casos, estará em curso a coação, um “aviso” constante, a presença valorativa exterior e anterior a todos nós – dizendo “faça”, “não faça”. Para quem duvida e desafia esses avisos e alertas, a coação se converte em coerção, ou seja, na ação da punibilidade[1].
Desse modo, na lógica reversa é como se a lei proibisse o ato criminoso. Porque impõe a pena e a pessoa restringe sua liberdade (mitiga, não faz, não age), exatamente, por medo de sofrer uma restrição da sua liberdade (prisão) ainda mais grave.
Portanto, na nossa cabeça funciona como um alerta: não faça, porque será punido. O receio da fofoca teria esse mesmo sentido inibidor – como se o status quo nos advertisse.
Em todos esses sentidos é manifesta a coerção, aquele “aviso” que não foi seguido por quem desabona as consequências e, daí, passa a funcionar uma “ação que coage”, constrange. Apesar de certa redundância, a coerção equivale à “ação capaz de se impor” e obrigar.
Por fim, é possível dizer que, de certo modo, a liberdade é absoluta. O X da equação é o resultado impondo consequências. A maioria de nós sabe perfeitamente disso, pensa assim, mas sempre há quem desafie a lógica.
[1] Alguns desse avisos, “sinais”, por certo, podem e devem ser questionados, como ocorre com apregoações absurdamente conservadoras, reacionárias ou atentatórias à democracia, aos direitos humanos, à dignidade humana. No entanto, sempre surgirão alguns “novos” limites a ocupar e disciplinar o espaço anteriormente dirigido por práticas sociais que já deixamos repousar no passado – ou que insistem em permanecer, como o racismo, a misoginia, a intolerância, a pregação do ódio social, a desigualdade social e regional, a exploração do trabalho análoga à escravidão, a imperante uberização e pejotização. Todavia, uma vez que ganhemos espaços dignificantes às classes sociais subalternas, às classes trabalhadoras, esses novos parâmetros não poderão se basear em “liberdades absolutas” que façam naufragar a dignidade humana. A resistência imporá barreiras sociais e políticas, bem como juridicamente deverá prevalecer o Princípio do não-retrocesso moral/social: foi com muita luta e resistência que se impôs o fim à escravidão, para em seguida se afirma o direito de greve e aos direitos civis. Um exemplo seria a descriminalização do uso da maconha, para fins medicinais ou recreativos. O mesmo aspecto pode ser visto em dezenas, centenas de casos: a instituição do direito ao divórcio é um exemplo. Num movimento semelhante, é possível vermos que o fim da tipificação penal também se alinha com uma rota progressiva do Direito: o adultério foi considerado crime por muitos anos, e deixou de ser. A prática da eutanásia é criminalizada no Brasil, porém, não é mais no Uruguai e isso nos traz ao propósito “evolutivo” do Direito. No sentido amplo, uma parte significativa das Ciências Sociais tem sua inscrição num certo tipo de darwinismo social – veja-se as “gerações de direitos humanos”; entretanto, a história é repleta de idas e vindas, no sentido de que não há “evolução continuada” e de que os retrocessos podem ser avassaladores: o Estado Islâmico é caso lapidar dessa dialética negativa. A história também nos revela que Direito e Moral não falam a mesma língua, num corte epistemológico muito evidente se compararmos o Código de Hamurabi com o notório Direito Romano, em que a técnica se “separaria” do certo e do errado derivados da imposição religiosa. O Positivismo Jurídico viria nessa mesma direção, dirimindo-se qualquer noção estranha ao Direito: a subsunção deveria fazer essa função, ao “retirar” o fato de suas circunstâncias e o aproximar, de certa forma justapor, ao tipo penal e assim lhe atribui uma pena ou não. Desse modo, o fato (autoria) seria analisado mediante seu “encaixe” no tipo penal, e nenhuma circunstância exterior deveria “contaminar” essa análise. Como se sabe, as avaliações não se dão exatamente desse modo, e nos bastaria avaliar que há circunstâncias atenuantes (agir em legítima defesa) ou ainda mais incriminadoras (premeditação). Esta separação, no entanto, se considerada fria demais, pode revelar um direito nazista; tanto quanto, ao se buscar uma reaproximação, iremos encontrar o oportunismo ou o obscurantismo legislativo: tivemos recentemente uma tentativa de se punir mais severamente a vítima de estupro que fizesse aborto, do que em relação ao ato de violência sexual (a vítima teria uma pena maior do que a do estuprador). O que seria atentatório a qualquer noção mínima de justiça. Mas, o fato de existir uma tentativa desse gênero – assim como a que prevê uma “autorregulamentação ambiental” para quem promove o desmatamento – já nos indica que uma suposta Moral não só é manejada a serviço de interesses escusos como produz verdadeiros atentados ao Direito que já se provara progressivo. A existência e perseverante aplicação da pena de antecipação da morte em alguns países, com múltiplos métodos, e a sua vedação em muitos outros (como no Brasil) nos indica que essa luta humanitária (“evolutiva”) do Direito é uma constante no momento presente. Sob as “gerações dos direitos humanos”, a transformação da perspectiva dos direitos individuais (à propriedade, por exemplo) em direitos individuais homogêneos – acessibilidade, desenho universal – denota, mais uma vez, que é uma luta progressiva, um tipo de dialética que tende a transfigurar o individual no coletivo; aliás, há muito se tem a primazia do Princípio da prevalência do interesse público sobre o privado. O fator aqui em destaque seria sua efetividade (ou não).