quarta-feira, outubro 29, 2025
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Inteligência degenerativa

Por Vinício Carrilho Martinez

Em algum momento da história, mais ou menos recente, surgiu uma espécie de teoria – um teorema, sem uma exata verificação dos fatos – ou ideologia, mas não era empregada no sentido antagônico à verdade, um apanhado de ideias viscerais (militância incontrolada pela razão), e, sim, correspondia a uma visão de mundo, uma cosmovisão e, por isso, mantinha uma boa dose de idealismo (não se refere aqui à ingenuidade): um conjunto de ideias positivas, mas com uma base significativa de ideal inalcançado. Esse ideário dizia algo como: “a tecnologia deve estar a serviço da Humanidade”. Era (ou é) mais uma expectativa do que uma fantasia. Pois bem, esse é o grande problema, porque nem a tecnologia está postada, destinada, a produzir o bem à humanidade, como, menos ainda, está a ciência que a chancela.

A primeira parte dessa questão deveria ser tomada a partir da distinção entre técnica e tecnologia: a imensa maioria das análises acerca dos impactos sociais provocados pela tecnologia confunde, (propositalmente?), as duas construções humanas. O distanciamento basilar está na essência histórica, ontológica, que cada uma dessas composições congrega:

  • A técnica sempre foi aliada da Humanidade, aliás, sem a invenção da técnica (ou descoberta – como no caso do manejo do fogo) não estaríamos aqui agora falando sobre isso. A Humanidade como a conhecemos, o Homo sapiens sapiens (o humano que sabe ser capaz de pensar a si, ao contexto e aos seus próprios pensamentos) é produto milenar da junção (sem hierarquia) entre técnica, arte e política[1]. Entendendo-se a política como o “fazer-se política”, pois se faz política e é feito/a por ela, concomitantemente[2]. A técnica, neste contexto inaugural (já não era primal, em relação à Humanidade), estava presente tanto na produção de artifícios quanto de artefatos. A invenção ou o aprimoramento, diversificação do manejo e uso martelo é um caso emblemático, pois sua empunhadura implica em fazer uso de ferramenta de trabalho e produção, assim como pode ser uma arma perigosa, ou, ainda, um objeto esportivo (lembremos do arremesso de martelo nas Olímpiadas e que, de fato, reproduzem antigos gestos de arremesso de pesos na arte da guerra[3]). Agora, se o jogarmos nas Fossas Marianas, por mais estiloso e funcional que possa ser, o martelo perderá todo o seu significado. De qualquer modo, para o bem ou para o mal (guerra), esse artefato (e a produção técnica envolvida) sempre esteve sob a condução humana. Não se tratava apenas de consciência sobre o uso, mas, sobretudo, de conhecimento técnico (algo semelhante aos domínios dos antigos artesãos, para exemplificar). Esse pode ser o recorte que traz clara distinção acerca do próprio conceito de tecnologia.
  • Na técnica, o controle do processo é humano, na tecnologia, gradativamente, acentuadamente, o controle humano vai se esvaindo. O que antes implicava na autonomia e na possibilidade de emancipação dos produtores, trabalhadores, artesãos, mestres de oficina, passa a ser alienado (retirado do controle humano) por meio a imposição das sucessivas formas de substituição da técnica por algum nível de automação, replicação, reprodução. Isso desde o mais incipiente substituto do domínio sobre o conhecimento técnico, até as fases atuais e agudas de total alienação humana do processo produtivo: o Homo faber[4] é o tipo conclusivo dessa imagem de perda do controle da produção do conhecimento técnico que projetamos. Uma forma de ilustração disso estaria na comparação entre a prensa de Gutemberg e o chat GPT. É óbvio que ninguém se imagina produzindo e imprimindo seus registros numa prensa do século XV; porém, o que se esquecem de nos dizer é que, Gutemberg tinha pleno domínio sobre seu conhecimento técnico (e assim fazia política), ao passo que a Inteligência Artificial “pensa por nós”: sabemos que não se dá desse modo, mas a título de comparação é ilustrativo[5].

 

Desse modo, a maior diferença entre técnica e tecnologia está na arquitetura da autonomia e da possível emancipação humana (sob a técnica) e, inversamente, na afirmação hegemônica da alienação e perda de controle humano (com a hegemonia tecnológica). E com isso temos a primeira conclusão antecipada: ao contrário do que queria crer o ideário que listamos no início, a tecnologia jamais teve o propósito da satisfação humana. A tecnologia é um produto do capitalismo, assim como se deu com as Caravelas do Colonialismo. É certo que o aprimoramento da bússola se deu nesta fase inicial do sistema capitalista, no entanto, quando a bússola passou a ser empregada com a finalidade de expandir o capital, ela, a bússola, deixou de ser uma mera bússola (artefato técnico), à medida em que transformava em instrumento capitalista: extrator da condição humana – muito amplificado, como sabemos, pelo escravismo que se seguiu à Expansão Ultramarina.

As atualidades tecnológicas, mormente motivadas pelo fascínio com a Inteligência Artificial – apelidada falsamente (ideologia farsesca) de “inteligência generativa”, de algo capaz de gerar alguma coisa[6] – é, na expressão mais correta, uma tecnologia degenerativa. Nós simplesmente abdicamos de sermos humanos, transferindo-lhe tarefas que são inerentes à condição humana[7] – quer dizer, é condição sine qua non ao fazer-se humano. Disso resulta a abdicação mais plena do “fazer-se política”. Como é que se pode aventar cidadania, capacidade cognitiva aplicada à política (emancipação), autonomia (capacidade de decisão) se transferimos o “fazer-se política” para uma inteligência degenerativa das essenciais condicionantes humanas[8]?

É precisamente o caso da Albânia[9], ao entronizar pela primeira vez na história da degradação humana uma Primeira Ministra de IA. Então, é chegada a hora em que a IA já recebeu o passaporte da produção artística, do manejo econômico[10], do controle sobre o conhecimento técnico (máquinas projetam máquinas) e, por fim, agora lhe transferimos a capacidade decisional. Isto quer dizer que abdicamos, espontaneamente, do exercício do poder, pois, em síntese, o poder equivale à capacidade de decidir – e nisto se avoluma a ideia da emancipação: quem decide o que, quando, porque, para quem (contra quem), de que como?

Se é outrem quem tem essas normativas – incluindo-se a soberania legislativa: quem define o que é exceção e o que é regra –, por óbvio, jogamos à crítica roedora dos ratos qualquer lapso de emancipação. Nosso esforço pela desumanização nunca foi tão volumoso e assertivo: estamos conseguindo!

[1] LÉVI-STRAUSS, C.  O Pensamento Selvagem. Campinas, SP: Papirus, 1989.

[2] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação e Sociedade*: Sociologia Política da Educação. São Carlos: Amazon, 2025. Disponível em: https://www.amazon.com.br/dp/B0FXSXHN7R.

[3] LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

[4] Não parece ser à toa, mera casualidade, que Gramsci associou a emancipação, a libertação e afirmação humana à simetria entre o pensamento e a ação, o saber e o fazer, como ligação substantiva que é a primazia do “saber-fazer”. O intelectual orgânico é o humano emancipado, plenamente constituído em sua humanidade, livre dos parcelamentos e das asfixias controlativas do sistema produtivo, pois, o grifo vai para a junção entre o Homo fazer e o Homo sapiens: “Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar” (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 52-3).

[5] No ritmo atual do Capitalismo digital e do ponto de vista conceitual, metodológico, faz tempo que somos capazes de produzir decupagens impressionantes, todavia, foi na mesma velocidade que perdemos a habilidade da serendipidade e da bricolagem.

[6] Por enquanto a IA não gera nada, ela apenas se apropria do nosso esforço, trabalho e engenho postados na Internet. Promove o pior tipo de apropriação possível (como apropriação indébita), do que não lhe pertence, fazendo uma síntese, buscando nosso extrato humano, e colocando à venda (para nós) o que nós fizemos e lhe transmitimos gratuitamente.

[7] “Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação […] A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especialmente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões <viver> e <estar entre os homens> (inter homines esse), ou <morrer> e <deixar de estar entre os homens> (inter homines esse desinere)” (ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 15).

[8] “Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto nas Assembleias e de participação no exercício do poder público em sua pátria” (ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 36).

[9] https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/diella-1a-ministra-de-ia-do-mundo-esta-gravida-de-83-filhos-anuncia-albania/. Acesso em 29/10/2025.

[10] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx2706j8lzlo. Essa demanda do Bot milionário faz relembrar um dos robôs de Asimov, n’O homem bicentenário, quando se põe numa súplica exasperante por se humanizar: “Podia ser livre, mas no fundo tinha um programa muito minucioso em relação ao seu comportamento com as pessoas humanas e só ousava avançar com passos bem tímidos; retrocedia meses quando encontrava franca desaprovação. Nem todos aceitavam a liberdade de Andrew. Era incapaz de ficar ressentido com isso e no entanto sentia certa dificuldade no seu processo de raciocínio quando pensava no assunto” (ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 31). Ao contrário de nós, que fazemos tudo ao nosso alcance para nos desumanizarmos: “Nos tempos modernos, metaforicamente, a IA corresponde mais a Hall, Exterminador do Futuro, Blade Runner, do que aos Tempos Modernos: Chaplin é o perfeito desenho do início do século XX, da industrialização incipiente advinda da 2ª Revolução Industrial e que, obviamente, não poderia espelhar a automação que se faria nos 50 anos seguintes” (MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação para além da exceção*: Educação para além do capital; Educação após Auschwiz, e depois de Gaza; Educação em Direitos Humanos; Educação Constitucional. 499 p. 2025. Tese [Título de Professor Titular] – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2025, p. 250).

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