Ana Luiza Júdice Costa
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
Como é possível pensar numa educação emancipadora e antirracista?
Cruz e Sousa, o “Cisne Negro”, registrado na literatura Simbolista brasileira, foi um homem preto que utilizou do poema e da simbologia para expor sua angústia perante o racismo sofrido e a dificuldade em se estabelecer na profissão de escritor, especialmente pela condição subalterna (da infraestrutura política do Brasil do século XIX) com relação às pessoas de pele escura e retinta. Em seus versos, há o uso recorrente de palavras que remetem a utensílios de cor clara, e não insolitamente, à vontade de “constituir-se” branco. Hodiernamente, sua história é usada nas aulas de literatura como mostra do sofrimento interminável, político e estrutural dos negros – aparentemente atemporal pela inaptidão das políticas públicas do país.
É claro que, se no século XIX Cruz e Sousa tivesse ao seu redor pessoas que fossem educadas com uma instrução ética, empática, desvinculada dos estereótipos culturais racistas, sua vida teria sido mais “leve” e menos breve – a tuberculose veio logo, e ele foi imortalizado como o primeiro simbolista preto da sua época, dentre muitos mestiços.
Albert Camus, em seu livro “O mito de Sísifo: um ensaio sobre o absurdo”, traz o suicídio como a epítome de um conjunto de ações externas (sociais) e internas (individuais) que sufocam a vontade de viver e de dar sentido à sua existência. A falta dessa vontade é um “absurdo”. Portanto, é um absurdo perceber que o poeta se imortalizou não pela sua obra, mas por uma doença que roubou sua vida e pelo racismo que suicidou suas ideias e seu “eu” negro – na busca de ser branco, Cruz e Sousa matou a sua persona – um absurdo, um crime, para uma alma tão genial.
A retrospectiva do simbolista encontra seio fecundo na contemporaneidade. Numa sociedade tão avançada tecnologicamente, o social retrocede ao perpetuar a lógica escravista e, ao contrário do que pressupôs Paulo Freire, o negro oprimido muito dificilmente virará o opressor, porque está muito preocupado em salvar-se do mundo e viver numa realidade falsamente inclusiva. O mundo é branco, pensa branco e age brancamente, e aquele não o é sofre retaliação – física, psicológica ou verbal. Como, então, ser um professor antirracista se fora da escola o discente vai sofrer o estigma da sua cor? Essa é a questão mais exigente e urgente deste século.
Voltamos então ao mito de Sísifo: carregar uma pedra ladeira acima, eternamente, por castigo divino. Na mitologia grega, Sísifo teve a “audácia” de enfrentar a morte, enganando os deuses tiranos Hades e Zeus. Espelhando convergentemente para o presente, o homem e a mulher pretos carregam pedras todo dia, pois precisam (e não porque querem!) enfrentar as autoridades (o Estado e os governos) para sobreviver. Se Sísifo soltar a pedra, é esmagado e levará consigo milhares de vidas inocentes logo abaixo, na cidade mortal que ele protege.
Em “A Cor do Amor”, de Elizabeth Hordge-Freeman, as hierarquias sociais são expostas em uma comunidade negra da Bahia, cujo cotidiano é demonstrado por ser o relato da incorporação da branquitude na consciência dos moradores – negras de nariz afilado, cabelos lisos e pele clara são melhor vistas dentro da comunidade e têm mais chances de casar-se com um “homem branco rico” e “mudar de vida”. O livro deste século mostra que a autonomia e a autoestima dos negros foram minadas. Pensando nisso, como educadores devemos criar bases para restaurar a autoestima e a relação de pertencimento do negro com essa terra – que também lhe pertence.
Passando para o contexto educacional, as perspectivas aqui anotadas (Elizabeth, Sísifo, Cruz e Sousa) servem para que analisemos do que carecem os alunos – uma educação emancipatória sobre os estigmas da estrutura social. Para isso, o docente deve se utilizar de referências afrodescendentes na sala de aula, como músicas, mitologias, livros e figuras expoentes da luta antirracista, como Ângela Davis, Martin Luther King, Bell Hooks, Alice Walker, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, dentre outros. Além disso, os estudantes devem entender as terminologias corretas: preto e negro (este para pretos e pardos e aquele somente para pretos), e jamais usar substantivos pejorativos como “mulata”. Não obstante, aspectos geográficos e culinários de locais com ancestralidade africana devem ser explorados, como a cultura baiana e nordestina, bem como a própria África. Todos esses aspectos passam, necessariamente, por alguns estágios sequenciais, aqui enumerados:
- Estrutura curricular antirracista;
- Formação docente libertária (Paulo Freire) e antifascista;
- Corpo docente alinhado às pautas de antirracismo e diversidade cultural.
Outras necessidades importantes, porém, mais difíceis a longo prazo, é uma mudança estrutural no conceito de Estado – para quem e por quem? Quem faz a lei e para qual população ela serve? Uma política que atende uma parcela específica da sociedade é morta.
Aristóteles costumava dizer que a democracia se realiza na conversa entre diferentes opiniões, no entanto – e não estou deslegitimando toda a sua obra, mas apontando um fato –, Aristóteles era um homem branco, de “boa vida”, que poderia cultivar o livre-pensar e não trabalhar. A história não é contada e não conta sobre gente negra, sobre indígenas, sobre chineses, sobre orientais, porque a perspectiva da educação brasileira é europeia e ocidental. E é justamente essa visão que devemos desconstruir em sala de aula.
A cura para a varíola, por exemplo, foi inventada na China do século X, com a aspersão do vírus em pó no nariz do paciente. A doença se desenvolvia em uma forma branda e logo era curada. No entanto, na educação ocidental, especialmente no Currículo Paulista, a vacina “descoberta” no século XVIII pelo franco-inglês Edward Jenner (Europeu. Surpresa? Não!) foi a responsável por “curar” o mundo da varíola. Não foi. Nunca foi. Quanto conhecimento não perdemos por oprimir aqueles que não são da nossa etnia? A educação brasileira não é só racista, é totalitária, cega, rasa e xenofóbica. E o docente também precisa mostrar isso aos seus alunos: ele deve levar exemplos não ortodoxos, e para isso ele precisa se instruir primeiro.
Por meio do exposto, é possível perceber que educar para a libertação dos estigmas passa necessariamente pela desconstrução dos padrões bancários da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), cuja metodologia mecanicista atende ao mercado mundial de criação de robôs de fabricação seriada e, consequentemente, por toda a “cortina de ferro” da politicagem. Essas coisas precisam ser mostradas, debatidas, repassadas.
Mais do que mera informação, mostrar ao alunado o contexto de seu país é dever do educador que preza pela liberdade de escolha do seu aluno. Quem ele (o estudante) vai querer ser? O que ele vai fazer no futuro? Que tipo de ser humano ele se tornará? A ele não pode ser negada a emancipação de uma consciência livre dos amálgamas entorpecentes do mundo se a intenção do educador for uma Educação da consciência (Paulo Freire). A liberdade é esperança, desde que a esperança repouse no direito de coexistir. Toda a minha escrita, logo, é o esteio para uma metodologia de justiça, é como eu pensaria para criar uma aula de cunho emancipatório.
Embora a discussão seja longa, não posso deixar de abordar a questão indígena. O que é a emancipação se não um desenvolvimento moral? De caráter? A emancipação urbana ostentada no dinheiro é uma farsa. O “amanhã não está a venda” (Krenak). E o que é o amanhã? É a possibilidade de uma vida saudável e justa., E isso quem nos ensina é o filósofo ambientalista Ailton Krenak, da aldeia ancestral Krenak.
Não é de hoje que comunidades indígenas avisam o homem branco sobre os impactos do seu consumismo, do seu egoísmo, nas relações intrassociais (empresto da Ecologia o prefixo “intra” como referência ao termo “intra-específica”, que define contatos dentro de uma mesma espécie, entre os indivíduos) e com a natureza. A resposta da branquitude é queimar as ocupações e comunidades indígenas. Dessa forma, o antirracismo também deve pautar-se na não xenofobia.
Em conclusão, é possível pensarmos em uma educação antirracista e emancipatória desde que não estejamos dispostos a cometer o absurdo de suicidar a originalidade dos povos. Para isso devemos nos munir de instrução, conhecimento para então instruir, e protestar fervorosamente contra o status quo no cotidiano fazendo o incomum – uma pedagogia da consciência e da Esperança. Na parte “prática das coisas”, as aulas devem seguir os princípios aqui expostos e recorrer mais ao debate que à punição como método de aprendizado, às visões decoloniais e mais humanas.
REFERÊNCIAS:
CAMUS, A. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Livros do Brasil, 1943.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
FREIRE, P. 1921 – Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido / Paulo Freire. – Notas: Ana Maria Araújo Freire Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREEMAN, E. H. A cor do amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. Editora EdUfscar, 1º ed, 2021.
KRENAK, A. A. L. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.