Ilustração-Dora Longo Bahia. Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças) 23 x 30.5 cm cada
Por VALERIO ARCARY*
Quando consideramos os pesos proporcionais, há mais lealdade ao lulismo entre os miseráveis, e maior consolidação do reacionarismo entre os remediados, uma inversão histórica
“A cisma é pior que uma doença” (Provérbio popular português).
A apresentação pela bancada evangélica, apoiada pelo bolsonarismo com a cumplicidade do Centrão, de um projeto que nivela a criminalização, até do aborto que é considerado lega, após 22 semanas ao homicídio incendiou uma mobilização nacional de repúdio que foi capaz de realizar as maiores passeatas de 2024 nas grandes cidades em 2024. Foi espetacular. O movimento feminista revelou força social de impacto. Foi uma resposta contundente a uma provocação ultrarreacionária. Mostrou um caminho.
Mas no marco de uma situação defensiva, e com o apelo de uma bandeira democrática humanitária. Não deve iludir a esquerda, em especial, a anticapitalista, que um problema vital permanece intacto. A extrema-direita fraturou a sociedade, profundamente, porque conquistou uma poderosa base de massas na classe trabalhadora. Sem reconquistar a maioria, unindo os assalariados “remediados” com ou sem carteira assinada, com a parcela mais pobre do povo, não será possível derrotar social e politicamente a corrente neofascista. Essa deveria ser nossa estratégia: construir uma maioria social entre os explorados e oprimidos.
Mas não é a linha do governo Lula. A orientação do governo Lula é tentar repetir, teimosamente, em 2026, a tática eleitoral de 2022, com a estratégia econômico-social de 2006: manter a Frente Ampla, se não no primeiro turno, pelo menos no segundo turno, arrastando os votos da fração burguesa liberal. Será possível? Sim, mas provavelmente, não será o bastante, e perderemos as eleições.
Por quê? Porque o Brasil mudou e a vitória eleitoral de 2022 foi circunstancial, em grande medida em função do impacto da pandemia. Não é provável que se repita. A representação política tradicional da classe dominante, desde o fim da ditadura, sempre teve o apoio da maioria da classe média, que se dividia entre MDB e suas rupturas e os herdeiros da Arena. Mas conseguiam arrastar o voto da maioria do “povão”, em função das relações de clientela, nos interiores rurais e nas extremas-periferias urbanas.
Isso mudou. Depois dos treze anos de governos de colaboração de classes liderados pelo PT, ocorreu uma mudança político eleitoral muito progressiva. O impacto de algumas reformas progressivas – Bolsa-família, aumentos do salário-mínimo, redução do desemprego, cotas nas universidades, expansão do SUS, entre outras – garantiram a consolidação do apoio eleitoral de massas entre os mais pobres ao lulismo. Antes de 2002, a esquerda não vencia eleições entre os mais pobres, por variadas razões.
Só que, nos últimos dez anos, outra grande mudança qualitativa aconteceu, desta vez reacionária: a extrema direita conquistou posições entre as camadas médias da classe trabalhadora. É uma tragédia, mas uma “divisão” aparta duas parcelas da classe trabalhadora: os remediados e os pobres. Enquanto uma maioria dos condenados à miséria “giraram à esquerda”, pelo menos metade dos remediados “giraram à direita”.
Na raiz deste processo encontramos transformações sociais profundas. A “crueldade” histórica é que a desigualdade social entre os que vivem do trabalho assalariado diminuiu, porque o piso da extrema pobreza subiu, mas a remuneração das camadas médias de trabalhadores estagnou com viés de queda. A distribuição funcional da renda entre capital e trabalho somente oscilou, sem sair do lugar.
Nestas duas parcelas há gente de esquerda e de direita com visões de mundo irreconciliáveis. Mas uma perigosa ilusão de ótica alimenta conclusões míopes. Não é correto concluir que a maioria dos remediados, que estudaram mais e vivem um pouco melhor, ainda têm hoje uma inclinação para a esquerda. Ou que os mais pobres têm preferência pelo reacionarismo.
Na verdade, quando consideramos os pesos proporcionais, há mais lealdade ao lulismo entre os miseráveis, e maior consolidação do reacionarismo entre os remediados, uma inversão histórica. A miopia é mais grave quando associamos a preferência religiosa pentecostal na análise. O bolsonarismo é, amplamente, majoritário entre os evangélicos, mas minoritário entre os mais pobres. A percepção desta divisão fica mais enviesada ainda quando integramos a fratura racial na avaliação. A maioria dos remediados não é autodeclarada negra, ou a maioria dos mais pobres não é branca. Medo e preconceito envenenam a compreensão deste paradoxo.
O pentecostalismo da prosperidade continua crescendo. Mas a ideia de que o reacionarismo religioso se concentra, essencialmente, na parcela mais pobre do povo não corresponde à realidade. Lula mantém um apoio majoritário entre a população que ganha até dois salários-mínimos, não só na região Nordeste.
Há uma correlação entre baixa escolaridade e influência das grandes igrejas evangélicas, mas não há causalidade entre pobreza e bolsonarismo. O núcleo duro da força social e eleitoral da extrema direita repousa nos remediados, assalariados ou “empreendedores”, não entre os despojados. Assim que a renda permite as famílias de trabalhadores contratam trabalho doméstico, matriculam os filhos em escolas privadas, compram planos de saúde para seus pais, alugam por uma semana uma casa na praia para férias, compram automóveis e por aí vai: imitam o padrão de consumo da classe média proprietária ou de alta escolaridade em funções executivas.
Não assimilam somente um estilo de vida, mas as ideias de uma visão de mundo: repudiam os impostos porque não usam a educação e saúde pública, odeiam o Estado porque foram envenenados pela Lava Jato de que tudo é corrupção, e abraçam a perspectiva de que na vida social é o “cada um por si mesmo”. A estagnação da mobilidade social e a pressão inflacionária nos serviços empurraram uma parcela dos remediados para o bolsonarismo. Mas, infelizmente, é ainda mais complicado. A parcela dos remediados que apoia o bolsonarismo tem ressentimento político contra a esquerda porque acredita que são injustas as massivas transferências de renda para a pobreza extrema. Abriu-se uma brecha entre remediados e muito pobres.
Lula venceu entre as mulheres que são o núcleo duro da corrente pentecostal, mas têm em média mais escolaridade que os homens. Lula venceu entre os pretos que são a parcela mais pobre entre os negros, mas têm em média, a mais baixa escolaridade do povo. Não é possível identificar, portanto, causalidade direta entre o nível educacional-cultural das pessoas e a preferência política pela extrema direita.
Não era assim. A esquerda, essencialmente, o PT, foi majoritária entre os trabalhadores que ganham entre três e cinco salários-mínimos entre 1978, quando se abriu a fase final da luta contra a ditadura, até pelo menos 2013. Passou a ser majoritária entre os mais pobres, que ganham até dos salários-mínimos, após o primeiro mandato de Lula entre 2003 e 2006, garantindo a reeleição.
Dilma Rousseff foi eleita em 2010 e reeleita, em um segundo turno apertado, em 2014. Lula venceu por margem, dramaticamente, estreita em 2022. Mas Fernando Haddad perdeu para Jair Bolsonaro em 2018. Qual foi o deslocamento social decisivo? A conquista do voto dos miseráveis pela extrema direita, em função do apoio pentecostal? Ou a perda de influência entre os remediados?
Resumo da ópera: por que parece tão difícil para a esquerda reconquistar confiança entre os trabalhadores remediados que votaram no bolsonarismo? Porque o projeto lulista para vencer em 2026 aposta em “mais do mesmo” e está errado. Não vai ser possível repetir em 2026 o que deu certo em 2006, vinte anos atrás.
A fórmula da vitória, em 2006, foi essencialmente: (a) redução do desemprego pelo crescimento econômico dinamizado pela exportação de commodities com preços turbinados pela demanda chinesa; (b) controle da inflação pela acumulação de reservas cambiais, e taxas de juros reais entre as maiores do mundo; (c) distribuição de renda através de políticas públicas focadas na extrema-miséria.
Esta estratégia ignora que o Brasil não é mais o mesmo. Não vai dar certo, “mesmo que dê certo”. A economia pode crescer, apesar do arcabouço fiscal? Não é o mais provável, porque sem investimentos públicos parece difícil que o mercado interno mantenha a dinâmica de 2023, mas ninguém pode saber porque depende das demandas do mercado mundial. A inflação vai se manter abaixo de 4% ao ano? Ninguém pode ter certeza, é até improvável, mas não é impossível, se o Banco Central mantiver as taxas de juros entre as cinco mais elevadas do mundo. O Bolsa-Família turbinado com piso de R$600,00, algo em torno de US$120,00, garantirá a lealdade dos mais pobres ao lulismo? Provavelmente, sim. Ainda assim não será o bastante. Porque esta estratégia não permite recuperar o que a esquerda perdeu entre os trabalhadores remediados.
Seria possível outra estratégia? Sim, sempre há alternativas. Mas ela teria que passar por uma “revolução” na educação pública que torne as escolas atraentes, não somente porque são gratuitas, mas porque oferecem ensino de qualidade pelo menos equivalente á média das escolas particulares. Teria que passar por uma “revolução” no SUS, para que a marcação até de uma simples consulta, não seja somente para dois ou três meses depois. Teria que passar por uma substancial redução dos impostos de renda sobre os remediados.
Isso não será possível sem impostos sob as grandes fortunas, heranças e renda, por exemplo. Seria indispensável uma corajosa luta política. Mas, também, ideológica. a defesa da legalização do aborto, que já tem um atraso de meio século em comparação com os países centrais. A defesa de políticas antirracistas mais audaciosas como cotas de 50% nos concursos públicos. A defesa da descriminalização das drogas como resposta ao poder do crime organizado e à insegurança pública.
Luta política, inclusive, para garantir a expropriação de fazendeiros que fazem a expansão da fronteira agropecuária para que queimadas no Cerrado e Amazônia não se repitam, e catástrofes como as inundações no Rio Grande do Sul não caiam no esquecimento.
*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc]