Por EDUARDO GALENO*
Considerações sobre o filme “Ici et ailleurs” de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville
“Se o estado de exceção realmente pode ser eliminado do mundo ou não, não é uma pergunta jurídica” (Carl Schmitt, Teologia política).
Descontinuidade
“Em 1970, esse filme se chamava Vitória. Em 1975, esse filme se chama Aqui e em outro lugar.” O início é o fim. Ou o contrário. Dá no mesmo.
Hipótese: fazer um filme sobre a Palestina, sobre a revolução palestina, em 1970. Fato: melancolicamente, em 1975, Jean-Luc Godard descobre o fracasso em dizer, em falar. As descontinuidades entre o fato e a hipótese apresentam o documentário na forma que sublinha o mundo, o real: sublime determinismo ou determinismo do fragmento. É uma deslocação sempre a vir. Por isso angustiante. Instabilidade.
Ensaio – não consigo dizer
Infundamental e complexo representar a dor e o sofrimento de um povo – sem rosto –, desterritorializado. Justamente, Aqui reside a emergência da experiência formal em Ici et ailleurs: se é impossível formalizar a perda, que se perca a formalização. Mas não é simplesmente fazer perder a coisa, jogar com a inutilidade da expressão, mas fazer dessa regulação – importantíssima para qualquer ato nas práticas de cinema, escrita, pintura etc. – a ponte para a neutralidade da imagem, que significa, em outros termos, incomunicação, algo sequer formado, não pensado. A Palestina, por acaso, não é exatamente isso: um não-lugar?
Não se fala nada quando se tem tudo para falar. Na Palestina de 1970 como na França de 1975, uma imagem vale mais que mil palavras.
Terceiro
Como tal, a enunciação e em outro lugar permite mostrar esse local que existe e não existe.
Jean-Luc Godard: “espaço e tempo, pergunta e resposta, entrada e saída, ordem e desordem, interior e exterior, preto e branco…”
Ainda e já, França e Palestina, família e grupo de guerrilha – o que aconteceria se essa mistura ocorresse? Uma proposição em que alguém supera a díade e a conjunção pura, revelando aquilo que há de mais particular nessa relação do ET. Parece que para o Jean-Luc Godard de 1975 existe uma Palestina. Para aquele de 1970, existe outra.
A Palestina e a Palestina: autoconsciência. Consciência cuja função, de tal modo, não é voluntária: é o próprio objeto que fisga o pensamento de Jean-Luc Godard. Corpos permanentemente enrolados e transmutados em pensamento, que caem, não sem tamanha dificuldade (“muito fácil e muito simples dizer simplesmente que os ricos estão errados e os pobres têm razão”, diz J-L.G), num poço de indecisão. (Porque é no vazio, afinal, que as imagens não-binárias, godardianas, são colocadas).
Isso sugere um eco, sugere um deslocamento. É fácil dizer que Israel está errado, muito fácil dizer que a IDF está errada ao matar palestinos. Assim, por esse motivo, Jean-Luc Godard repele qualquer imediatismo em Ici et ailleurs: precisamos transbordar as palavras, mas por desgaste. Nós podemos, a partir desse ponto, mostrar. Entretanto, não por associação: quando Jean-Luc Godard sobrepõe Hitler e Golda Meir, não está a associar uma figura à outra. Surge uma terceira entre dois códigos, “outra imagem que induzirá um interstício entre as duas”.¹
Nesse meio, nesse intermezzo – entre Treblinka [e Gaza?] –, a gramática do ente é desfraldada e invalidada, admitindo como contíguo (mas não verdadeiro) o sinal que antes estava lá, eternizado. Jean-Luc Godard consegue fazer o som virar imagem e a imagem ser sonora – quebrando no centro da língua – quando “esgota” o continuum da Coisa, essa grafia que bambeia o cinema.
certifique-se de ter esgotado
tudo o que se comunica
pela imobilidade
e pelo silêncio²
Blanchot disse: “ver é talvez se esquecer de falar”³. Nem mil palavras valem uma imagem, responde Godard e Miéville.
Soma errada, soma certa
“O Capital funciona assim: num dado momento, o Capital adiciona e o que ele adiciona são zeros.”
No Dziga Vertov, esperança e sonho eram somados por Gorin e Godard, em 1970, na Jordânia, antes do Setembro Negro: a vontade do povo + a luta armada + o trabalho político + a guerra prolongada = até a vitória. Mas o resultado não bateu. Pobre idiota revolucionário… algum impedimento brecava a vitória. O cálculo acabou de maneira bem diferente, com quase quatro mil fedayin, guerrilheiros da OLP, mortos.
Cinco anos depois, Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville tentam de outro jeito: não adicionando, mas fazendo-com: 1917 e 1936 e 1970. Nascem imagens diferenciais de aporia aí. Em momento nenhum, o processo por meio do qual isso é arquitetado não transporta a aporia como irresponsabilidade ou quietismo, porém como travessia. Godard aparenta ter atravessado, desde o fracasso do Maio de 1968, o rio que iria desembocar em Notre musique (2004) e Film socialisme (2010), que também praguejam contra o apartheid israelense e, de certa forma, continuam o projeto pragmático de Ici et ailleurs. O novo cálculo almejava reparar e superar tanto o liberalismo da Nouvelle vague quanto o voluntarismo pós-68, vindo da interpretação de Mao à francesa. No que tange ao imperialismo das imagens, há essa tentativa intensa de abraçar o sentido da generalização por um desvio(détournement). É nesse local que ele enxerga a estratégia de passar perto e desviar do todo: de Brejnev, da televisão, da revista pornô, de Kissinger, do Partido Comunista Francês…
Teatro
Pelo fato de encadear uma crítica interna à representação, Ici et ailleurs diz: todo engajamento pode vir a ser uma mentira. A criança recitando em tom alto o poema de Darwish, o dirigente do Fatah representando o povo ou os cineastas criando um cenário em que o caso principal é a repetição – de mandamentos e ordens – de uma jovem às falas do significante-mestre: tudo contempla um gênero que poderá caminhar da militância de esquerda ao fascismo (Jean-Luc Godard cita, tal é a lei do discurso).
Nesse sentido, o que interpela e não cessa é o evento de fechamento da representação. O teatro foi assim por dois mil anos, convencionando o ciúme do pai, a perversidade de Édipo e a clausura da interpretação em prol da unidade. Que fazer diante disso? As nuances estão (ou se criam) na própria obra. Ici et ailleurs quer desmantelar o orgânico a partir mesmo dessa fissura no meio da encenação. Algo não deve ser escravo. Pelo menos é assim na intervenção godardiana.
E, se tirarmos o poder da linguagem, resta a afasia. Na frente de enfermos, desses afásicos (de emissão, dado que não podem dizer suas próprias mensagens), “selvagens palestinos” – adjetivação de todo o excedente que não é pleno Humano e sujeito –, Godard permitiu se calar após sua revisão. Os fedayin falavam de desaparição e morte quando Jean-Luc Godard falou e os representou vitoriosos.
“Nós queríamos gritar vitória (…) no lugar deles.”
Nós e eles, aqui e acolá
Eu me dirijo a alguém em qualquer situação. Mas naquilo que se perde entre mim e o outro, se abre o estranhamento. O pingo do ruído que me surda não é aquele anterior, que já havia me dado a possibilidade de ligação uterina com o estrangeiro. Essa surdez, o impedimento de escutar a voz do que vem de fora, me é, ao mesmo tempo, violenta e quieta. Me solidifico, então, na solidão. É ela que deixa a vaga para um novo espaço. Espaço dissimétrico, totalmente ocasional, espaço de insuficiência. É o espaço em que grito, ecoando minha voz e fazendo ouvir também a do outro (porque ele, afinal, também grita).
Para Jean-Luc Godard, Settembrini “completa” Naphta⁴ de alguma maneira. De alguma maneira, o ódio colonial dos israelenses completa a fragilidade colonizada dos palestinos. Aqui, o que está em causa e consta é menos a exploração (identificação exagerada com o outro, que, no frigir dos ovos, é um elemento narcísico etnocêntrico) do outsideness [exterioridade] por um self-othering [autoalterização] do que a radicalidade intrusiva, derramamento do Fora em toda a sua complexificação, inclusive sob forma paradoxal.
O nós da família francesa se encharca necessariamente com o eles dos palestinos, assim como o aqui depende do acolá. Desse modo, a discrepância entre os dois lugares só pode advir da forra, pelo forçamento de algo que ultrapassa os sentidos da ratio imagética, da economia das imagens. O filme-ensaio de Godard talvez seja uma pesquisa desse material impreciso, forjado, que as imagens têm sobre nós.
Não ideológico, mas ideia. Não uma imagem justa, justo imagem.
“Aqui, uma família francesa que assiste televisão.
Lá, imagens da revolução palestina.”
Miéville: “os outros, esse Lá do nosso Aqui.”
Didatismo
O plano didático de Bertold Brecht impregna o filme. Tudo gira no entorno de um debate sobre princípios e razões, dando condicionamento a um estupor referencial de imagens. Sendo elas frias, quentes e mornas, o som que sai (dos tiros e da TV, dos palestinos e da família francesa ou mesmo de Jean-Luc Godard) interroga ao sentido uma pergunta: o que fazemos, o que falamos e o que mostramos com imagens de um apagamento étnico?
Penso que não há um modelo. É isso que o voice-over do filme quer nos fazer apontar.
“São filmes que se autoanalisam”⁵, dizia ele. Quer dizer, Ici et ailleurs faz parte de um cinema pós-dramático. Assim como Brecht fez a revolução no teatro (mas por vias, contextos e polos diferentes), Godard tentou fazer no cinema (ou, na verdade, continuou a revolução que os anos 1960 deram a essa prática).
Nesse tema, o percurso godardiano é: iremos tensionar, ao máximo, nossas informações, colocá-las num vácuo e depois espalhar rastros. Aula: mostrar para vocês o que e como se faz. Ici et ailleurs é uma aula acima de tudo.
Jean-Luc Godard como arquivista
Quero enfatizar: a melancolia das imagens em Ici et ailleurs não é derrotista. Ela é arquivista. Porque trabalha não com derrotas definitivas, mas testemunhos, testamentos temporais e espaciais (Godard: “a minha dupla identidade, espaço e tempo, encadeados um ao outro”).
O lamento dos arquivos, como tal, aparece como um pez no imaginário, uma marca que deixa traços, completamente jogado na amplitude dos vestígios. A lamentação de Jean-Luc Godard responde a uma característica íntima do espaço-tempo: à busca por distintas formas de vida, dentre as quais as aparições anacrônicas (Nachleben). A esse post scriptum do cinema, por meio do percepto pós-moderno, Godard parece adentrar.
É por isso que o instante da imago repete a tendência de ir para além do princípio do presente. Ici et ailleurs está entre Vertov e Warburg. Trás a percepção para o sublime material, enquanto, por outro lado, invoca o “arquivo” como ruína contemporânea. Logo, ele amplifica a relação das imagens, conjurando outros tipos, planos e modos de intromissão. Significa dizer que a Palestina de 1970 – suas práticas, seus sentimentos – ressoa nessa, a atual, no momento em que escrevo e no momento em que alguém lê o que escrevo. Eis o tempo e o espaço, virtualidades e realidades, sonhos e ações.
Se comprometer com o esquecido – ele manteve. Se comprometer com a justiça, “a tradição do esquecido”⁶. Ele, na mesma época dessa revisão, grafou:
EU
JÁ NÃO TENHO
ESPERANÇA
OS CEGOS
FALAM DE UMA
SAÍDA
EU
EU VEJO⁷
O texto começou com uma declaração de Carl Schmitt sobre os limites do direito. Perguntemos agora: na arte, há limites na resposta sobre o estado de exceção, mais especificamente no cinema? Ainda hoje, podemos falar na representação da dor e luta palestina? Se sim, basta insistirmos em outras respostas e intenções – obviamente pensadas a partir de uma decupagem responsável, tradução de nossos retalhos impossíveis –, como a da poesia; se não, lembro as palavras de Darwish em A Palestina como metáfora: eles venceram, “será o fim”.
*Eduardo Galeno é graduado em Letras pela UESPI.
Notas
¹ DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
² GODARD, Jean-Luc. História(s) do cinema. São Paulo: Luna Parque e Fósforo, 2022.
³ BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
⁴ Personagens de A montanha mágica (1924), de Thomas Mann. Existe um ar real nessas relações, mas não exatamente identidade entre um e outro.
⁵ GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
⁶ AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
⁷ Six fois deux/Sur et sous la communication (1976). Acredito que o filme aqui resenhado é um ponto de virada na carreira de Godard. Por isso mesmo remeti, no título, a dois filmes símiles de sua autoria: Je vous salue, Marie (1985) e Je vous salue, Sarajevo (1993), em que o evento como tal – seja a gravidez, seja a guerra – é saudado.