Por Vinicius Miguel (*)
Introdução
As eleições legislativas de 2024 na França, que resultaram na vitória do bloco de esquerda Nova Frente Popular (NFP) e na renúncia (ainda esperada) do primeiro-ministro Gabriel Attal, oferecem um rico campo de análise.
Esta análise se concentra em três elementos principais: a irrupção do Real, o papel do sintoma na política e a dialética do desejo e da fantasia.
A Irrupção do Real
Para Žižek, o conceito de Real, derivado da psicanálise lacaniana, refere-se àquilo que é impossível de simbolizar completamente dentro de um sistema de significados.
No contexto das eleições francesas, a ascensão do NFP representa a irrupção do Real no cenário político.
O resultado das eleições contraria as previsões e desafia as expectativas estabelecidas, funcionando como um evento traumático que revela as falhas e limitações do discurso hegemônico dominante.
A irrupção do NFP, ao desmontar a expectativa de uma vitória da extrema direita, expõe a insatisfação latente e as contradições internas do sistema político francês.
Este evento traumático desestabiliza a narrativa estabelecida, forçando uma reavaliação das posições e estratégias políticas.
O Real, aqui, é a emergência política de um desejo coletivo por mudança que não pode mais ser contido pelas estruturas simbólicas tradicionais.
O Sintoma Político
O sintoma é a forma latente de contradições de um sistema que se manifestam de maneira visível.
A vitória do NFP é um sintoma das tensões sociais e econômicas subjacentes que permeiam a sociedade francesa.
Essas tensões são resultado de anos de políticas neoliberais que exacerbaram a desigualdade e rupturas de redes de solidariedade estatal.
O sintoma, neste sentido, é a emergência de uma força política que, ao mesmo tempo em que busca representar os interesses das classes subalternas, revela as falhas do consenso neoliberal.
A incapacidade do centro-direita de Macron de conter a ascensão tanto da extrema direita quanto da esquerda radical indica um deslocamento na base social e política do país.
Esse deslocamento não é simplesmente uma (mu)dança de alianças eleitorais, mas a expressão de uma crise estrutural que desafia a legitimidade das instituições existentes.
A Dialética do Desejo e da Fantasia
O desejo é sempre um desejo mediado pela fantasia, que organiza e dá sentido às nossas aspirações e medos.
No (o)caso das eleições francesas, a fantasia neoliberal de um progresso contínuo através do mercado livre foi profundamente abalada.
A vitória do NFP pode ser vista como a expressão de um novo desejo coletivo por justiça social e igualdade, um desejo que não pode ser plenamente articulado dentro da estrutura simbólica existente.
Essa nova fantasia, que promete uma (trans)formação sutilmente desestabilizadora das relações sociais, desafia a narrativa hegemônica e abre espaço para a emergência de novas subjetividades políticas.
A Crise do Presente e a Crise da Representação
A repisada crise da representação, onde as formas tradicionais de mediação política não conseguem mais capturar a complexidade das demandas sociais e tampouco escoar as vozes de grupos em antítese.
A dificuldade de formar uma coalizão estável após as eleições ilustra essa crise. Crise do Presente e Crise da Representação.
A fragmentação política e a diversidade de demandas dentro do bloco de esquerda são sintomas da complexidade crescente da sociedade francesa, onde as identidades e interesses não podem mais ser facilmente subsumidos em categorias políticas tradicionais (operariado x burguesia urbana).
(In)Conclusão
As eleições legislativas de 2024 na França revelam um momento de crise e transformação.
A irrupção do NFP como força dominante no Parlamento é a manifestação de um Real que desafia a ordem simbólica estabelecida, expondo as contradições e tensões internas do sistema político.
Este evento traumático, ao funcionar como um sintoma, exige uma reavaliação das estratégias políticas e a construção de novas fantasias que possam articular as demandas emergentes.
A crise da representação, evidenciada pela dificuldade de formar coalizões estáveis, acena para a necessidade de uma transformação das formas de mediação política e de experimentação social.
Este momento histórico é uma oportunidade para repensar a política como um campo de possibilidades abertas, onde novos desejos e fantasias podem ser (des)articulados e (ir)realizados.
Alianças e danças eleitorais. Qual o ritmo da mudança?