quinta-feira, outubro 30, 2025
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Necropolítica e luta de classes no Rio de Janeiro- O fim do Estado

 

 Vinício Carrilho Martinez

 A chacina ou o massacre – como se queira chamar – levados a cabo pelas forças policiais do Rio de Janeiro, a mando do Governador do Estado, no dia 28 de outubro, pode e deve ser visto como crime e atrocidade do Poder Público. Contudo, deve ser avaliado com lentes multifocais – especialmente para sairmos um pouco do senso comum, da luta ideológica em torno das narrativas ideológicas e da luta eleitoral que já se pronunciou.

O que já se sabe, com certeza, é que se ultrapassou o número de mortos do Carandiru, em São Paulo. O episódio paulista foi de tão extremada gravidade que impulsionou a geração do PCC, e que hoje já atua no formato de máfia. A operação deflagrada na Faria Lima, em busca de lavagem de dinheiro no centro econômico do país, é suficiente para esclarecer o que é o modelo de máfia.

Enquanto o CV investe em disputa e controle territorial, com muito armamento pesado e confronto direito com rivais do crime organizado e a própria polícia, o PCC em São Paulo é hegemônico – isto quer dizer que, sem “inimigos” aptos em seu território, o PCC evita o confronto direto.

No modelo de máfia, o PCC emprega seus recursos menos em armas do que em fundos e empresas listadas na Bolsa de Valores, por exemplo. Além disso, o PCC investe em inversão de capitais, como na aquisição (ou roubo) de lojas de marca, postos de gasolina, empresas diversas, propriedades rurais e até mesmo em usinas alcooleiras. Talvez venham dessas usinas as mortes por metanol mais recentes.

Em parte, isso explica porque as ações e os confrontos entre o CV e as forças policiais geram chacinas como essa, porque outras facções criminosas também disputam o controle territorial.

Do que decorre uma outra parte da análise: o Estado perdeu essa luta ou guerra faz muito tempo. A origem do alegado “problema geográfico” – presente no RJ e ausente em SP – remonta ao recorte da luta de classes no Rio de Janeiro, quando as elites dominantes empurraram forçosamente as populações pobres, sobretudo, negros recém libertos, para os morros. Assim, as elites se apossaram em definitivo do centro territorial e das regiões mais privilegiadas, com acesso às melhores praias e belezas naturais.

O Estado perdeu essa guerra quando iniciou uma batalha feroz pela criminalização do povo pobre, negro e oprimido. Quando, no plano nacional, mantinha-se o famigerado “crime de vadiagem” – tipologia que jamais alcançou os filhos das tais elites, por mais que fossem ociosos e desapegados de qualquer responsabilidade social.

O crime de vadiagem, por óbvio, sempre vitimou (vitima) os pobres que não tinham (tem) empregos fixos e regulares. Uma outra amostragem disso se verifica quando o policiamento exige que a pessoa apresente sua carteira de trabalho: o documento indicaria que aquele indivíduo, se tivesse registro, não seria um “vadio” (hoje a polícia chama de “vagabundo”). Em tempos digitais, a polícia logo apreende o celular.

É óbvio que isso exemplifica o racismo institucional, uma vez que nunca se pede a carteira de trabalho para os filhos brancos das elites. Mas, além disso, nos esclarece que a luta de classes no Brasil tem que ser vista a partir das condições raciais, propriamente racistas. Só podemos entender a dinâmica do capital por meio desse recorte racista. Tanto é assim que impera, inclusive economicamente, um Pensamento Escravista – sendo formado pela junção do racismo exuberante (institucional, social) e a exploração do trabalho análogo à escravidão[1].

Isso colabora para entendermos essas ações tão letais do Poder Público: há uma perspectiva profundamente elitista e racista. Lembrando-se que esse modus operandi policial não é exclusividade do Rio de Janeiro, posto que é operado em maior ou menor escala, igualmente, em São Paulo, na Bahia, em Goiás, no Ceará e em outros Estados brasileiros. Definitivamente, no Brasil, a luta de classes se alimenta do ódio social, racial, misógino, homofóbico, pedófilo, elitista e fascista[2].

O que se denominou, teoricamente, de Necropolítica – muitas vezes com imprecisão conceitual[3] –, no Brasil, pela leitura das Ciências Sociais se define como uma ferrenha, intestina, luta de classes racista. Não se costuma enveredar muito por esse caminho (como desbravou Florestan Fernandes) porque quando se trata de luta de classes – para além da morbidade deste ou daquele agente público às voltas com suas chacinas – a questão é remetida para o “depois do epifenômeno”, para aquilo que só se vê sob o uso do “método a contrapelos”.

Com essa leitura a contrapelos, outro fator para nossa análise que se desdobra desse morticínio no Rio de Janeiro (mais de 134 pessoas, em menos de 15 horas de confronto[4]) nos revela uma guerra civil[5] – em curso há muito tempo. Há muitas provas que cabem nesta avaliação da luta de classes racista que se amotinou enquanto guerra civil: os armamentos de guerra, os indescritíveis níveis de violência e crueldade, a letalidade programada, o tratamento brutal e específico dado aos “inimigos”, o recorte absurdamente evidente entre brancos e negros (não-brancos) e ricos e pobres.

Porém, o aspecto que se destaca no miolo disso tudo e nos traz de volta ao Estado é identificado como a perda da soberania legislativa, por parte do Poder Público[6]: quem define as regras e suas exceções nas comunidades, morros e favelas ocupadas e controladas pelo crime organizado não é o Estado Democrático de Direito[7]. As regras que vigem sob a Lei do mais forte, sob a orquestração do crime organizado, são as que definimos democraticamente como exceções, privações, destituições, abusos e corrupções do sentido público.

É muito fácil perceber que quem diz o que é certo e errado, o que pode ou não pode ser feito, é o crime organizado, ou seja, as regras de organização do poder, as normas de convivência social não são definidas pelo Estado, mas sim pelas facções e grupos organizados para o cometimento dos piores crimes (hediondos, assim como são hediondas as chacinas públicas). Neste caso, a conclusão é simples: soberania legislativa[8] mudou de mãos.

É óbvio, portanto, que desse modo o “poder decisional” – e que inclui o direito de vida e morte – não tem mais os limites legais, constitucionais[9], não mais se reconhece como público, não se valida como legitimamente constituído e, a partir daí, passa a reinar a Lei do mais forte (neste caso, a lei do capital que abastece e oxigena o crime organizado).

Desse modo, já concluindo, dizemos que, com isso, o Estado perde por completo o domínio territorial, a soberania territorial e simbólica naquelas áreas. Não são apenas “rivais” do Estado os que decidem contra a vida daquelas pessoas todos os dias, com seus fuzis de guerra, são definitivamente inimigos do Estado. No entanto, note-se, sem glamour nenhum, que os inimigos do Estado são abertamente os inimigos daquelas populações – usem ou não fardamentos[10], usem ou não gravatas.

Possivelmente já esteja claro nesta análise, entretanto, destaquemos que não há pendores para esse tipo de morticínio estatal e muito menos para a ação dos mais violentos grupos e organizações criminosas que colonizam as comunidades pobres do Rio de Janeiro e de qualquer localidade brasileira[11] – quem busca glamour na Lei do mais forte capital criminoso veja o que é o conhecido Tribunal do Crime.

Afinal de contas, são os reféns da violência estatal e da brutalização imposta pelo crime organizado quem sofre diretamente com essa mudança radical da soberania territorial e legislativa. São os que mais sofrem, os atingidos de uma forma ou de outra, os que, provavelmente, não terão a oportunidade de ler esse texto, assim como seus filhos e filhas estão proibidos de irem à escola.

Sob o escrutínio da Lei do mais forte, do capital que pertence aos grupos e às organizações criminosas, não se encontram os Princípios Gerais do Direito, os direitos humanos e sequer se pronuncia a dignidade humana[12].

No nosso caso, o pior está em pensar que as mortandades vão continuar a ocorrer, com mais ou menos vítimas, porque a guerra civil no meio da luta de classes racista está só no alvorecer pós-moderno. O Estado aplaudirá sua própria barbárie por muito tempo ainda[13].

 

 

[1]  Nas suas múltiplas formas: trabalho propriamente escravo (vide o Rock in Rio de 2025), uberização, precarização absoluta do Mundo do Trabalho (pejotização, exploração de terceirizados e estagiários, mormente no setor público), expropriação do trabalho infantil, adultização. Essas formações sociais de organização pós-modernas (neoliberais, neocoloniais), em conluio com as formas pré-capitalistas de organização e de expropriação da força de trabalho, mostram que o Brasil vive os dilemas do século XXI associados a restos históricos do período colonial: o futuro é sempre incerto. Certeza mesmo nós temos é de que o presente é o passado presente (MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991).

[2] MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

[3] A contabilização de um milhão de presos no Brasil, por óbvio, em si já credencia o funcionamento do sistema panóptico de exclusão, encarceramento e punição social e racista; porém, não está legalizado o Apartheid – e isso traz uma atenção quanto aos conceitos (MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N1 Edições, 2018). No mesmo sentido, apesar do encarceramento social e racial, extensivo e massivo (uma fábrica de repressão racista), o sistema panóptico do Estado Penal não está plenamente ajuizado no país – o que nos leva a outro cuidado conceitual (LOIC, Wacquant. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2003).

[4] Apurar e responsabilizar os agentes e as autoridades públicas pelos homicídios é uma obrigação pública e, se condenados, devem receber as penas mais severas que o suporte legal do Estado Democrático de Direito permitir. Entretanto, o fato mais mórbido, por sua vez, é que, enquanto miolo político e ideológico (cultural) da luta de classes racista, sequestrado pelas elites incultas, o Estado brasileiro é programado para a repetição desses mesmos crimes sociais e raciais. Veremos morbidades como essa muitas vezes.

[5] Eufemisticamente se chama a guerra civil de “guerras assimétricas de rua”; no entanto, isso produz o mesmo efeito escapista (ideologia farsesca) de quando se referencia o trabalho escravo por seu apelido: “exploração do trabalho análogo à escravidão”. Quando, na prática, se não são apenas modismos são ideologias farsescas – no Brasil são modismos mórbidos.

[6] Na versão clássica de Zippelius, corresponde ao Estado de Direito: “a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 377).

[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Lisboa-Portugal: Almedina, 1990.

[8] “a Constituição designa o conjunto de normas jurídicas que definem os órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua criação, sua relação recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do indivíduo em relação ao poder do Estado” (PEÑA, Guilherme. Direito Constitucional – Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p. 61).

[9] JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.

[10] Aliás, neste cenário de guerra civil, muitos associados às organizações criminosas utilizam “coletes táticos”, como se fossem membros integrantes de forças militares regulares.

[11] Cabe sempre lembrar que “é crime a advocacia do crime”: uma coisa é defender pessoas associadas, outra bem diferente é defender essas organizações.

[12] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion. (8ª ed.). Madrid : Editorial Tecnos, 2003.

[13] Após minuto de silêncio, deputados aplaudem morte de “bandidos” no RJ: https://share.google/hwQWWfDTjK5hh4qMX. Acesso em 30/10/2025.

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